Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 2011

Líbia. O risco de desmembramento. Guerra civil - por Carlos Mesquita

 

 

Não há actualmente informação independente sobre o que se passa na Líbia, mas sobram noticias. É difícil distinguir a contra informação, tendente a conquistar a opinião pública para os interesses em jogo, da realidade.

 

Desde o início da conflitualidade na Líbia, notícias veiculadas por fontes e rumores transformados em notícias, são desmentidas em seguida pelos factos; como o caso do ministro britânico William Hague, que há uma semana viu “informações de que Kadhafi ia a caminho da Venezuela”, ou bombardeamentos aéreos de manifestantes em Tripoli e fogo de armas pesadas, que os portugueses que de lá vieram desmentiram.

Juntando o que se tem dito e comparando com o que vai sendo confirmado, conclui-se que o mundo está sujeito a mais uma campanha de intoxicação, a lembrar as armas de destruição maciça, que Colin Powel, Durão Barroso, e companhia, “viram”.

 

A maneira de filtrar algumas das aldrabices, é conhecer um mínimo da história da Líbia e seus povos, da organização política e militar, e de Kadhafi.

 

Em breves notas, deixando a história anterior de outras ocupações; em1914 aLíbia estava ocupada pelos italianos, durante a Primeira Guerra os líbios reconquistaram a maior parte do território, vindo novamente a perdê-lo para a Itália após a guerra, sendo integrada no reino de Vittorio Emanuel III de Itália em 1939. Vittorio tinha conduzido Mussolini ao governo, que entra na Segunda Guerra em1940. ALíbia é palco dos confrontos entre o Afrika korps do marechal alemão Rommel e os ingleses. Após a derrota das forças do Eixo, a Líbia passou a ser governada pelos ingleses na Tripolitânia (oeste) e na Cirenaica (leste) ficando a parte sudoeste de Fezzan na posse dos franceses. Aos governos militares dos aliados, e após aprovação da independência pelas Nações Unidas em 1 de Janeiro de 1952, sucedeu o líder religioso Idris al-Sanusi, emir da Cirenaica, coroado rei da Líbia

 

A monarquia despótica de Idris concedeu bases militares aos americanos que com os ingleses dominavam económica e militarmente o país. A líbia vivia do aluguer das bases militares, era pobre e antiquada. Com a descoberta de petróleo em 1961 abriram-se conflitos que haveriam de dar origem ao golpe que derrubou a monarquia.

 

Em 1969 os “oficiais livres” fazem um golpe de Estado, sem derramamento de sangue, contra o rei Idris. Kadhafi, “Guia da Revolução” e presidente do Conselho da Revolução lidera o novo regime.

 

Kadhafi, de origens beduínas e nascido no deserto líbio na região de Sirt, recebeu treino militar no Reino Unido, tendo iniciado o golpe de Estadoem Benghazi. Admiradorde Nasser que governava o Egipto, é com esse modelo e com o exemplo da soberania sobre o petróleo, que já como chefe de Estado, em 1970 expulsa os militares estrangeiros, nacionaliza a banca e o petróleo.

 

Com o dinheiro dos recursos petrolíferos as condições de vida dos líbios transformam-se radicalmente. A Líbia possui as maiores reservas de África e do petróleo de melhor qualidade, Kadhafi lança-se na construção das infra-estruturas modernas necessárias a um país com as dificuldades de ser na maior parte estéril e desabitado, atrasado e sem mão-de-obra.

 

Etnicamente a Líbia é na maioria Árabe, chegados cerca do século VIII, havendo também os Berberes (pré-muçulmanos), Tuaregues e Tibbu, nómadas para quem as fronteiras são uma abstracção. Os últimos 40 anos, a modernidade Líbia, representa um salto civilizacional extraordinário, do camelo e tenda às costas, para a vida urbana e o conforto. Mas a Líbia é um território tribal, sempre foi e continuará a ser, a obediência primeira é para com a tribo, o que convém reter para a compreensão da revolta actual. Kadhafi, sendo um nacionalista árabe, representa(va) também o factor agregador entre as tribos.

 

A maior tribo (Warfalla) reúne uma sexta parte da população e quer derrubar Kadhafi, enquanto a segunda mais importante – Magriha – compõe algum do sector público administrativo e divide com a tribo de Kadhafi (Gadaffa) boa parte dos postos superiores do exército. As tribos são mais de cem, mas a contabilidade de apoios ou revoltosos não se faz nominalmente. O exército convencional tem servido para empregar os filhos dos notáveis das várias tribos como oficiais, é mal treinado e mal equipado, é um meio de equilibrar as aspirações tribais e não o poder militar. As dissidências de alguns não perturbam o regime, e corresponde à obediência tribal. O poder militar está na segurança interna e nas “Milícias do Povo” os comités revolucionários cujas brigadas especiais não respondem ao exército, e têm-se mantido leais a Kadhafi e ao seu círculo mais próximo, o “Povo da Tenda”.

 

Na Líbia, em três décadas a população quintuplicou, mais de metade têm menos de 15 anos, e pouco mais de um milhão em seis são população activa, metade da população da Líbia é emigrante, mesmo assim uma taxa baixa se comparada com os países do Golfo. A maior parte da classe trabalhadora é estrangeira.

 

As regiões líbias não têm uma história de identidade comum, entre a Cirenaica e a Tripolitânia há deserto, do comprimento de Portugal, e da costa a Fezzan uma caravana demorava meses a chegar, sempre houve uma separação física.

 

A organização política de base, preconizada por Kadhafi, é de democracia directa (no papel), mas como no caso Bolchevique,em que Lenine retirou o poder aos sovietes porque o Partido era o guia da Revolução Socialista, também na Grande Jamahyria Popular Socialista da Líbia, a democracia directa não chega à superstrutura do poder, ele é exercido pelo círculo restrito de Kadhafi.

 

A falência do pan-arabismo secularista fez Kadhafi voltar-se para África, os investimentos alimentavam o sistema de alianças tribais e parece que Kadhafi descuidou a zona mais islamizada, a Cirenaica, com queixas antigas sobre a distribuição dos lucros do petróleo. As cisões podem corresponder a essa alteração das relações de força, e à repressão violenta das manifestações em Benghazi, pelo cunhado de Kadhafi, Abdullah Senussi, da linha dura da segurança interna; seria a isso que se referiu o filho de Kadhafi, Saif, como erros cometidos. Saif, um moderado do regime, pediu diálogo, mas os dissidentes pela voz do coronel Rasheed Rajab já disse que estão a preparar-se para atacar Tripoli. A guerra civil ameaça subir em escalada, ninguém sabe como vai acabar.

 

Com ou sem Kadhafi o desmembramento da Líbia parece inevitável, a divisão geográfica e o tecido social e cultural tribalista, não é o melhor molde para criar instituições de um Estado centralizado, uma vez separado politicamente dificilmente se reunificará. E se há tribos justamente descontentes com a divisão da riqueza até agora feita, quando estiverem divididas organicamente manda o mais forte, daí não virá mais justiça na partilha. Sem as regiões da Líbia unificadas teria sido impossível a obra extraordinária (faraónica) dos rios artificiais que bombeiam água do fundo do deserto do Sara e a levam aos campos e cidades por muitos milhares de quilómetros.

 

 

Os Estados Unidos, cujas companhias petrolíferas não estão presentes na exploração do petróleo e gás líbio, já prometeu toda a ajuda aos dissidentes, inclusive, como disse Hillary Clinton, auxílio político. Também a Al-Qaeda terá estabelecido um “emirato islâmico” em Derna, no leste do país, como afirmou Khaled Kaim aos embaixadores da União Europeia. Será que alguém pensa que as coisas estão a compor-se?

 

publicado por Carlos Loures às 20:00

editado por Luis Moreira em 07/03/2011 às 13:07
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6 comentários:
De João Machado a 1 de Março de 2011
O Carlos Mesquita apresentou-nos aqui uma útil e interessante síntese da situação. A informação está realmente muito condicionada pelos interesses em jogo. O petróleo e a situação estratégica da Líbia vão, mais uma vez, ter um grande peso na formulação de soluções. E as pessoas? É triste vermos tantos pseudodemocratas preocupados em trucidar Khadafi e, por debaixo da mesa, prepararem soluções que pouco ou nada têm a ver com os interesses do comum do cidadão líbio, português ou outro qualquer.
De Carlos Mesquita a 1 de Março de 2011
Segundo informação (de ontem) do Pentágono, os Estados Unidos aproximam forças militares (navais e aéreas) da Líbia.
De Luis Moreira a 1 de Março de 2011
Está a ser um dos mais lidos.
De Inês Aguiar a 1 de Março de 2011
Estive em Tripoli em 2007, vi o orgulho nacional da guia que nos acompanhava, observei espantada( depois de ter estado no Egipto, Tunisia, Marrocos) a cidade moderna e limpa... acredito que os USA já traçaram o fim Kadhafi.
Mais uma vez a falsa democracia interfere e a europa ajoelha....
De Carlos Loures a 1 de Março de 2011
Kadhafi não é uma personagem simpática para a maioria dos europeus. Porém ele nunca pareceu interessado em ser simpático. E considerando a região em que a Líbia está inserida, há aspectos positivos da sua política que não devem ser subestimados. No entanto, ninguém parece achar estranho que os Estados Unidos que em tempos o apoiaram, estejam tão empenhados em que seja derrubado. Com tudo o que na minha já longa vida pude observar, há um princípio empírico que nunca vi falhar a partir da II Guerra Mundial - os Estados Unidos e a Europa por eles dominada, do ponto de vista da Justiça, estão sempre do lado errado da barricada. Nem sequer me lembro da excepção que confirme a regra.

Este excelente texto de Carlos Mesquita chama-nos a atenção para a complexidade da questão líbia - para o mosaico étnico que a compõe - a intrusão de americanos e europeus na Líbia, pode desencadear uma guerra, a fragmentação do país. Que direito têm os Estados Unidos e a subserviente União Europeia de intervir na Líbia? Será para igualar o excelente trabalho que fizeram no Iraque?
De José Bernardo a 3 de Março de 2011
Boa malha. A comunicação social quer nos convencer que numa guerra civil dum lado estão criminosos e do outro combatentes, na Costa do Marfim há uma guerra civil mas nenhum dos contendores é acusado pelo Tribunal Penal Internacional. O problema de Kadafi é ter sempre sido anti-imperialista, e o petróleo claro.

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