Neste vídeo, apreciámos uma tentativa de fusão de tango e de fado, interpretada por Beatriz Ayas e pelos Portubayres. É um tema curioso, este o da similitude entre dois tipos de música urbana – a portuguesa e argentino-uruguaia. Aqui há tempos referi-me numa destas crónicas a um texto de Jorge Luis Borges sobre o assunto. Não o consegui encontrar, embora saiba que foi publicado num suplemento do DN num domingo de há muitos anos. Gostava de o ter consultado.
Em Abril de 1982, assisti na Gulbenkian à exibição de «Cinco Tangos», executada pelo grupo de Ballet da Fundação. A música era do Astor Piazzolla, o grande compositor argentino, mago do bandoneón. Várias vozes se fizeram na altura ouvir, chamando a atenção das afinidades entre o tango e o fado. Agora que se fala em candidatar a chamada canção nacional ao estatuto de «Património Imaterial da Humanidade», justifica-se avaliar até que ponto esse desiderato faz sentido. Avaliação que, estejam descansados, não vou fazer. Aliás o assunto está muito bem entregue – o Professor Ruy Vieira Nery, director do Programa da Educação para a Cultura da Fundação Gulbenkian e membro da comissão da candidatura diz que agora a decisão já só compete ao Ministério da Cultura. Em fins de Setembro passado, a UNESCO declarou o tango como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Mais jovem do que o fado, o tango antecipou-se – é caso para dizer que «passou a perna» ao fado.
Quanto às origens do fado, não me vou pronunciar, apenas referir o que se diz. Há a tese mais vulgarizada de que, quando a Corte de D.João VI regressou, trouxe consigo uma dança em voga no Rio de Janeiro a que se chamava «Fado», inspirada no lundum, e que podia ser acompanhada por canto. Na realidade, os primeiros registos escritos sobre o tema começaram a surgir no século XIX, mais na segunda metade. Mas foi uma inovação que depressa se converteu em tradição. Encontramos referências aos fado e aos fadistas, por exemplo, nos romances de Eça de Queirós. No «Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e Brasileiros», organizado por Camilo Castelo Branco, inclui-se um poema de Alexandre da Conceição – sobre um tal Marialva que «dançava o fado à noite em tabernas» - referência que acentua a tese da dança vinda do Brasil.
Outra referência cultural, o famoso quadro de José Malhoa, data de 1910. Nestes primeiros tempos, o fado surgia como fenómeno tipicamente lisboeta. As grandes fadistas do século XIX, a lendária Maria Severa (1820-1846), nasceu e morreu em Lisboa, e Maria Vitória (1891-1915), creio que também. Esta última cantava nas revistas e celebrizou o «Fado do 31», mais tarde interpretado por Estevão Amarante. Todos estes dados apontam para uma tradição, se assim se pode chamar, que se instalou rapidamente e que, como planta trepadeira, se enroscou no fatalismo da alma portuguesa e no miserabilismo inerente à pobreza citadina, com ele se confundiu, e às vezes pareceu mesmo estar na sua origem, ser causa e não efeito. Não esqueçamos que «fado» vem do latim «fatum», ou seja, «destino». Em menos de cem anos o fado (cantado) se espalhou pelo país e se transformou em canção nacional. Para além destas e doutras raízes mais remotas, o fenómeno Amália Rodrigues ajudou a enquistar o fado no tecido da alma popular, elevando-o à categoria de tradição. Mas, além desta tese, há outras – teria vindo de reminiscências das melopeias árabes ou, como já ouvi dizer, seria uma herança dos celtas. Estas duas últimas parecem-me teorias rebuscadas. Como seria possível o fado vir de tempos tão remotos e não existir, nas baixas e tordiões, por exemplo, ou noutro tipo de canção popular dos séculos que mediaram entre a herança céltica ou árabe e o século XIX, um fio condutor, um elo, que ligue esses vestígios?
Já o fado de Coimbra, com uma genealogia diferente, parece estar mais ligado às baladas tradicionais e, mais especificamente, à música beirã. Embora também seja um fenómeno relativamente recente. Os cantores Augusto Hilário, António Menano e Edmundo Bettencourt, bem como o grande guitarrista Artur Paredes, pai de Carlos Paredes, nomes maiores da canção coimbrã, são tudo gente do século XX. O tango é mais recente do que o fado. Foi buscar as suas origens à «habanera» (de La Habana). Desta dança terão surgido o maxixe brasileiro e o tango argentino e uruguaio.
A dança começou por se chamar «tango criollo» simplificando-se depois para tango. É já no século XX que se instala nos dois lados do rio La Plata, em Buenos Aires e em Montevideu. Como canção encontra em Carlos Gardel o seu mais emblemático intérprete. A relação fado/tango era evidente – canções nostálgicas, fatalistas. Amália disse ter encontrado a sua voz, cantando os tangos de Gardel. Agora é uma argentina, María Lavalle, que, inspirando-se em Amália, volta a acentuar a relação entre as duas formas musicais. Apresentou, há meses atrás, no Teatro Calderón de Madrid o seu espectáculo «Tú que puedes, vuélvete», fundindo o tango puro com o fado puro, misturando músicos argentinos e portugueses. Coisa que a nossa Mísia já tinha feito, para não falar nos fado tango de Amália, «Cansaço», agora interpretado por Camané. O mestre da guitarra António Chaínho, acompanhado pela cantora Marta Dias e pelo coreógrafo Alejandro Laguna, apresentou há anos um espectáculo em que fundia os dois géneros. Parece-me ser a primeira tentativa de fusão. Diziam que tendo o fado e o tango nascido em ambientes portuários e marginais, tinham trajectórias, história e sentimentos similares e, de certo modo, complementares. O que faz sentido.
Justifica-se integrar o fado no património imaterial da humanidade? Sempre vou dar a minha opinião: entendido como canção nacional, acho que sim. Recuso a ideia de que o fado «reflecte a alma do povo português», reflecte-a tanto como a chula do Minho, como o cantar alentejano ou qualquer outra forma musical popular do nosso povo. Naturalmente que o vira minhoto ou algarvio ou o bailinho madeirense, não se coadunam com o sentir de bastante mais de metade da população do país que habita as áreas metropolitanas de Lisboa, Porto e Setúbal. Parece-me ser esse o espaço do fado – reflexo fatalista da vida descarnada, afastada da natureza, que se vive nas cidades grandes. Não terá um historial muito antigo, mas se formos a ver, toda a canção urbana nasce no século XIX ou mesmo no século XX– a valse musette de Paris, os cuplés madrilenos, o tango de Buenos Aires e de Montevideu. Os blues saltam das plantações de escravos para as cidades, eclodem nos anos 40 do século XX em Chicago…Como diria Mr. de La Palisse, a canção urbana nasce, ou instala-se, com as e nas concentrações urbanas.
Ora vamos lá ouvir a María Lavalle. Silêncio, que se vai cantar o tango.
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