Há um silêncio de sossego sentado nas mesas brancas que adornam o respirar da noite no planalto imenso e húmido a libertar o ameno aroma da natureza. Mesas brancas que embelezam o luar; Mesas, muitas mesas, enfeitam o luar, imensas mesas sólidas, firmes, limpas e imaculadas. Mesas redondas, quadradas, retangulares, redondas a representarem a confluência das forças telúricas e o conhecimento instintivo, quadradas a significarem a passagem deste à consciência e à iniciação intelectual, retangulares configurando a tábua mística da revelação.
O arco da lua enquadra a infância com o carinho das vozes pequeninas, cantantes, a soletrarem o pensamento solto pelo ritual dos gestos e vai, alegremente, conquistando a luz da consciência. Não é a idade de ouro dos alquimistas mas a da origem transportando consigo o segredo de vidas ancestrais guardado na estrela que atravessa o cosmos para aqui repousar com o seu brilho diamantino a iluminar os caminhos da existência. Na poeira levantada pelas charruas que rasgam sulcos na alma das gentes perdem-se recordações da beleza e do amor que foram o berço da serenidade inicial. Deixa-se para trás o bosque maravilhoso das brincadeiras participadas pelos anjos protetores de modo a navegarmos pelo rio da aventura de cujas águas surgirá a deusa mensageira, senhora do obscuro domínio dos sentidos, para anunciar o fim da divina harmonia e o começo da peregrinação cármica.
Sentado à única mesa onde cintila a chama vermelha de uma vela como se fora luz de sangue ou desejo de pecado a ferir a alma de incertezas, encontro-me só, imóvel, trespassado por indolência intemporal suspensa na rama da inquietação. Guardei-me de branco (camisa, sapatos e fato), cor imaculada e serena, para este encontro dominado pela imponderabilidade de um astronauta a rascunhar hipérboles na cápsula do amor onde colho os frutos que conferem razão ao sonho e regam utopias entre beijos sublimes. Em planura de neve aguardo o corpo amado sem a vileza dos pensamentos que desconcertam a mente com o viscoso arrebatamento do prazer.
Distante e difusa, pequena e etérea, recorta-se no espaço a silhueta feminina transportando consigo a lira de Orpheu cujos acordes têm o privilégio de provocar o encantamento dos astros. Aguardo a proximidade do seu corpo onírico incitando o poema que rompe o percurso iniciático da juventude na descoberta dos segredos do mundo. Há um tempo infinito espero esta mulher imaginada pelos poderes da mente e submersa por ocultas quanto inexplicáveis sensações anunciadas quando me encontrei pela primeira vez com a palavra amor e a procurei desvendar letra após letra até chegar a este lugar isolado dos excrementos do mundo.
Corre em mim um murmúrio de águas alegrando ribeiros e alimentando fontes numa inocência doce e meiga que embala ilusões prontas a tornar menos penoso o caminho da aventura. Vindas de fora do nosso sistema solar descem fantasmagóricas figuras dispostas a descobrir a razão humana das suas desumanidades. Nada me impedirá, porém, de cumprir o castigo mitológico de Sísifo por mais traiçoeiras que sejam as montanhas, desde que te encontres a meu lado. A tua presença permitirá a cicatrização das feridas do meu corpo, serás o refúgio das minhas dores, o perdão das blasfémias do pensamento, o repouso da alma submetida ao martírio de viver. Desconheço quem és mas serás a minha guia, a minha deusa, o meu tormento capaz de toda a bondade e todo o desvario no roteiro que oscila, como ponteiro de bússola, entre a luz da consciência e a cupidez dos sentidos.
Oh, suprema provação! Luz neutra e incorpórea a golpear a inquietude do espírito que adivinha no traço alado da visão da lua o contorno do corpo esbelto pronto a franquear a porta do templo de Delfos.
Do lado oposto da mesa existes!
Aguarela de formas caprichosas, apelo de femininos encantos cravados na serena geometria de Cassiopeia, estendes as mãos de finos e compridos dedos, mãos de um oval perfeito revelando a sensibilidade extra-sensorial das estrelas como se tudo quando executamos tivesse um lado oculto. Silêncio e gesto convidam-me a sair da noite mística, noite de insondáveis segredos onde se confundem as falsas sombras da virtude com o insubmisso chamamento da libido incapaz de se submeter à punição dos cilícios na incansável penitência do desejo anunciado ao som dos tambores da tentação.
Correm pregões de vida soltando as cordas do veleiro da existência pronto a desafiar a rudeza das assombrações do mundo. De nada vale a lei da suprema sabedoria perante as armadilhas montadas pela divindade do tempo ao longo do percurso. Os musgos e as ervas perderam a ternura dos seus verdes tomando a agressividade das cores álacres e quentes que penetram o cristalino dos olhos e percorrem a espinal-medula num vento de sensações a sibilar pelas vísceras um aviso de tempestade.
Narcotizada a pureza dos sentidos sacode-me a lasciva visão do corpo cujo contorno perdeu o sopro de harmonia da paleta de Degas para renascer na opulência sensual dos tons de Renoir. A aura poética dos cânticos espirituais dilui-se no fogo das coxas voluptuosas a despertar pérfidas fantasias, transformando a intocável visão da inocência num pântano de vil cobiça. Vestal do meu tempo de suplicação as suas mãos famintas de carícias erguem sobre a minha cabeça a vela de chama vermelha, símbolo dos elementos terrenos que representam os trilhos do pecado e da ignomínia. Hora cega de arrebatadas vivências, rota de obsessões carnais escorrendo pelas paredes de casas baixas, moldura da rua imensa onde vegeta o arraial humano. Casas estranhas de piso térreo e ocre pintadas escondendo estigmas de desgraças antigas; casas de portas estreitas e paredes sem janelas para que a luz não ilumine as almas sepultadas no interior da sua solidão; casas de telhados negros e uma simetria de pobreza ofensiva da anarquia reinante no grande circo noturno.
Perturbante é a exuberância de vozes e gestos no mercado de gente em contínuo vaivém, enxame exibicionista que cruza e envolve. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, formam um bestiário onde cada um se entrega à libertação das emoções. A céu aberto cozinham-se bifanas, cachorros, farturas numa embriaguez de cheiros que dilatam as membranas do nariz. Na ácida atmosfera rasgam-se cores felinas enquanto vozes dormentes interpretam canções de sedução bêbadas de álcool, droga e sexo. Movimentam-se seres frenéticos, drogam-se outros encostados a paredes, alguns suspendem-se dos telhados balouçando-se numa só mão imitando símios.
Olha os que vendem, cambiam, trocam, jogam! Em tábuas e banquetas assentam as doses que os desgraçados vêm suplicar como vermes arrastando os corpos podres pelo vício. Todos desejam a euforia do instante, a loucura emprestada, o delírio oculto de outros mundos. Mulheres arrebatadoras dispõem armadilhas onde cairão as presas; aventureiros atropelam-se lançando cartas e dados que prevêem o futuro; traficantes de máscaras existenciais esperam em cada esquina, sorriso aberto, palavra estimulante, fio de ouro ao pescoço com crucifixo ou medalha de Nossa Senhora de Fátima caídos sobre o peito ou escondidos entre mamas que traficam trocando dinheiro pela dor alheia. Rua de fariseus, escumalha da vida apostando a sorte da fortuna dos que se entregam nas mãos malditas dos manipuladores do destino. Mãos grossas, boçais, dedos carnudos e sebentos carregados de anéis, dedos sórdidos movimentando-se como tentáculos dominando as vítimas para lhes sugar as almas e deixar os corpos vazios de sentimentos; dedos viscosos e depravados que gostam de mexer no estrume humano, roubam, sacam, matam essas mãos ameaçadoras pela configuração primitiva de besta amestrada. A lava da demência espalha-se pela turba que queima a carne pútrida contorcendo-se em esgares de felicidade infeliz. Bichos saindo das alfurjas da vida, ávidos de ambição, vorazes de opulência, sedentos de poder a faiscarem nos buracos dos olhos. Cambiam dignidade por dinheiro, trocam as mulheres por dinheiro, vendem filhos por dinheiro, corpos por dinheiro, fígados, corações e órgãos por dinheiro, guerras por dinheiro. Não lhes basta o luxo, nem a gula, nem a força, nem a posse pois seguem a corrente dos desejos insaciáveis. Vejam como se espojam de gozo físico mergulhado no festim da corrupção quais gorilas vomitando chamas onde os corpos ardem no calor do próprio fogo.
Neste universo satânico a multidão tumultuosa liberta a avidez dos instintos. Caminho turbulento onde a rainha dos meus passos vai abrindo rota empunhando o círio da chama de vermelho incendiada pelas diversas manifestações de luxúria expostas em pinceladas bizarras como um quadro de Jerónimo Bosch. Romaria de devassidão atravessando o tempo físico em poses alucinadas, o suor viscoso engordurando a pele, cobrindo-a de uma película brilhante que atrai os indefesos. Corpos nus enlaçados em posturas sensuais, mulheres com seios descobertos oferecidos a quem passa para os afagar e beijar, dedos espremendo tetas volumosas donde goteja um leite espesso que bocas famintas de crianças sorvem com avidez. Na cegueira da noite procuro vaga-lumes da alma para me protegerem da representação destes homens aguardando fêmeas que os satisfaçam, segundo a fome dos seus vícios, nos pénis grossos e eretos por masturbações contínuas para melhor as seduzirem, ou me resguardem do cheiro almiscarado das mulheres abrindo as coxas a fim de mostrarem distintamente as carnudas vulvas onde a saliência fluorescente dos clítoris espera carícias que acalmem a fogueira da exaltação.
Emudece o canto das sereias, a seiva deixa de correr no caule das plantas, tombam os fios de sol suspensos das ramadas das árvores. Há um anel de gente de todas as cores e de todas as raças soltando de si a face animalesca da gesta de viver que percorre a rua do destino dominada pelo gozo intenso de nacos da existência. Afogam-se na fúria dos seus actos, no egoísmo das suas atitudes, nas trevas dos seus apetites, no fosso fétido da promiscuidade. Exclamam-se palavras lambidas pela sensualidade mórbida que liberta na atmosfera o cheiro enjoativo do sémen espalhando o pólen da tentação. As gargantas apregoam, relincham, grunhem, desafiam o pudor dos ouvidos com urros boçais num coro de violentos recalcamentos a suplicarem adornos de ouro da concupiscência.
À medida que avançamos neste vale de corpos com rostos de sombras a minha dama perde as formas angélicas vislumbradas no verde campo dos pinheiros celestes e ganha provocadores volumes carnais a agitarem no meu cérebro excitantes quadros eróticos. Para onde me conduz nesta rua de todos os paroxismos onde o prazer se confunde com o sofrimento? Tudo quanto me rodeia tem a energia da matéria, atração telúrica que subjuga os sentidos e afoga a ternura num grito de alma incapaz de resistir à força indomável da natureza. A quente e inquietadora languidez do corpo percorre células desafiando com fantasias a imaginação, envolvendo a vista de imagens perversas, açoitando o olfato com os cheiros ativos da fornicação, despertando no tato uma incontida vontade sensorial. O ópio da libertinagem altera as cores de Saturno e espalha um arrepio de insanidade no contacto com as formas táteis e eróticas que varrem os sinuosos caminhos da libertação. Os meus olhos são rubis de lascívia correndo aquele corpo que me arrasta nas trevas da desordem, matéria febril lambendo-se na sedução dos vícios acomodados como répteis aos vis prazeres da existência.
No fim da avenida pranta-se um antigo e amplo casarão rosa velho acomodado no estilo colonial dos seus dois pisos, templo de amor carnal onde me deixo conduzir. Cloaca humana forrada interiormente a vermelho carmim, o Salão Paraíso encontra-se repleto de gente plasmada no nevoeiro do fumo que confere à nudez o deleite da sensualidade relaxante que sucede ao orgasmo. Uma turba de homens e mulheres, espalhando-se em cachos, povoa de cenas provocantes o grande e requintado espaço da entrada e a larga escadaria de mármore que conduz aos aposentos no primeiro andar. As roupas já de pouco servem nesta quermesse de favores sexuais, mas as jóias mantém sobre a alvura da pele o toque da tentação estimulada pelo envolvente som de velhas canções de cabaré.
O local é decorado por risos, vozes, gemidos, exclamações de euforia por onde passeiam sacerdotisas perfumando de incenso o campo apaziguado dos combates. Aspira-se o ferrete do amor transpirado caindo em gotas como se fossem pingos de orvalho suspensos das folhas do tempo. Os meus olhos plenos de corpos jovens, esbeltos, firmes, atrativos, espelham inconfessáveis tentações de linhas e formas em atitudes promíscuas e ofegantes rompendo o ambiente espesso engalanado pela devassidão.
Estandarte de vaidade e de prazer o sexo é objecto de culto condenado à implacável equação da decadência que nos fulminará arrastando-nos para o purgatório da velhice onde ficaremos a morder restos de irrecuperáveis recordações mergulhadas no sangue turvo que corre pelas artérias da alma. Tudo fenece menos o pêndulo dos anos demolidor de vivências que o espírito embala no equívoco da intemporalidade mistificadora do vigor e da robustez como se os anos não fossem a máquina trituradora da matéria secando a pele, mirrando os ossos, murchando os olhos, sugando a beleza da nudez até compactar cada ser num repelente fardo de sucata. Na súbita visão do futuro os voluptuosos humanos animais que se espojam no luxo confortável do Salão Paraíso representam-se-me doentes, enrugados, esqueléticos, andrajosos, sujos, arruinados, tristes, escravizados ao peso dos anos, mamas caídas e pichas murchas. Tipos bizarros iluminados por pinceladas loucas de uma luz branca e crua varrendo o cenário do presságio da finitude material sinal dos espíritos atormentados.
Passa por mim o fascínio do amor obsceno e vil submerso no calor da excitação da carne. A demência dos sentidos impele-me a descobrir os segredos do roteiro da luxúria nos sons barrocos da música de Corelli, atraindo-me para salas e recantos onde se estendem corpos desnudos em cenas orgíacas dignas de um banquete romano. Palavras impuras desprendem-se no espaço como flocos de neve porque as palavras impuras estimulam na agressão dos seus significados proibidos o feitiço do arrebatamento: a pureza envergonha-se, a inocência extingue-se, a castidade morre.
No velho corredor do primeiro andar aguarda-me a guia desta jornada demencial, o vestido vermelho aberto pela frente mostrando as pernas alvas e altas, lindas, que os sapatos de salto, traçados por presilhas brilhantes acima dos tornozelos, tornam esplendorosamente sexuais. Existe naquele corpo uma insidiosa hipnose de posse qual labirinto de volúpia a percorrer acumulando desejos e fantasias. A luz vermelha e velada suspensa do teto forra de luxúria as paredes em veludo carmim envolvendo os sentidos de uma cálida pressão sanguínea a latejar no cérebro e no pénis dorido pela rigidez. Matéria bruta subjugada pela moldura renascentista da única porta onde se destaca o deslumbramento da nudez magnífica e pujante que esporeia a excitação.
Com as suas mãos divinas despe-me peça por peça numa lentidão de sugestões. Atrai-me, percorre-me, acaricia-me, masturba-me o sexo dando-lhe vida e alegria, suspiro e alma até que se encontre enorme e hirto. As suas mãos sexualmente esguias e pungentes passam um fino creme nos seios, massajando-os até que os mamilos se encontrem rijos e espetados. Porque os acaricias nessa dolente provocação e não deixas que seja eu a afagá-los? Beija-os, são os teus favos de mel. São eles que matam a fome após o nascimento, confortam as lágrimas da infância, despertam as tentações da puberdade, alimentam a virilidade da juventude. São eles que confortam os ímpetos da meia-idade, povoam os olhos da imaginação nas primeiras solidões do outono da vida e, quando gastos pelo tempo, embalam a paz da tua velhice.
Puxa-me! Encosta-se a mim, esfrega-se em mim, enfia-se em mim, num êxtase de bacante lambe-me e num sussurro irresistível pede-me. De pé abre as pernas para que lhe introduza o pénis ansioso e tudo se confunda num impulso imenso e arrebatado. Sinto-lhe a pele incendiada a incandescer-me o corpo, as suas formas redondas a perfurarem-me os olhos de lascívia, a carícia da respiração ofegante, o odor marinho das axilas, a humidade inebriante da sua língua dentro da minha boca; inclina-me a cabeça para lhe sugar os peitos, aperta-me pelos rins com a tesoura das pernas para que a penetre fundo e pede mais e mais e mais numa voz rouca entrecortada por gemidos de gozo. Desvaira, suplica, grita, arrastando-me para as profundezas da alquimia orgástica, latente na desordem dos sentidos, até que os sons se tornam longínquos como se eu tivesse saído do meu corpo e flutuasse numa indescritível nuvem de prazer sem volume, nem forma, nem peso, nem ordem, nem espaço.
Ó solidão dos sentimentos nobres arranca-me daqui, deste fundo de mim que escraviza o corpo e crucifica o espírito! Retoma-me nos teus braços, não me abandones neste lodaçal de torturados seres para que encontre um refúgio onde possa existir. Ó minha estrela, anjo das minhas angustias, esposa dos meus momentos de benfazeja ternura, fada do meu sonhar de infância, senhora dos arroubos da minha puberdade, deusa dos cativantes idealismos da minha juventude, canta-me uma canção de ninar para eu sentir no meio deste delírio a esperança em reencontrar meu corpo de prata navegando à bolina pelos mares da tranquilidade.
Oiçam! O prazer é um martírio que depois de experimentado necessita de abrigo. E porque não se, no seu arrebatamento, ele arrasta-nos numa espiral de exigências?! Mesmo o prazer espiritual, o da virtude devota e mística, abriga-se das tentações da carne salvando a alma pela punição da matéria que prevalece, contudo, força indomável da natureza.
Desabrigado das minhas protecções e repudiando a tortura da castidade atravessei os campos selvagens da existência habitados por exércitos de funâmbulos representando cenas na indecorosa comédia da sobrevivência. Pavores não deparei, pânicos não tomei, mas há medida que o calendário corria no labirinto do tempo o pó do silêncio ia-se decantando no meu rosto e marcando os sulcos da mortificante satisfação de existir. Dor e infortúnio da matéria que pretende enfraquecer a vontade como se o esplendor do corpo fosse o alfa e ómega da vida e não a cela do seu sacrifício a ditar agora o desejo de encontrar um espaço onde possa, com paz no coração, colher as flores da serenidade.
Enquanto a mulher de fogo se afasta diluindo-se no fulgor das chamas que a consomem há uma harmonia que sossega este corpo dos impulsos viscerais. Nem doçura de ninfa nem mulher lasciva, ela sumiu, desapareceu no longe das coisas infinitas de que nada resta, nem cinzas feitas pó ou feitas nada no efémero planalto da memória. Manhã inicial a serenar das loucuras da vida cujas gigantescas dimensões fazem lembrar as misteriosas estátuas da ilha de Páscoa no seu virtuoso imobilismo. Como som dormente de violoncelo escuto o passado no vaivém de ondas de mar suaves a morrerem na areia. Regresso, já não àquele campo verde povoado de pinheiros e mesas brancas mas ao outro de destroços que deixei para trás, resíduo de dias de uma imensa várzea desprotegida de árvores, só arbustos num chão raso e irregular onde uma enorme ânfora milenar serve de apoio ao meu corpo fatigado.
Angústias despontam de buracos abertos em colossais paredes roídas pelos séculos e sustentadas por colunas de antiga imponência. Sedimentos de malogrados sonhos suspiram em lamento, não sonhos fugidios daqueles de dormir mas dos verdadeiros, dos consentidos que se acasalam connosco e vão sendo adiados até ficarem quietos e solitários a aquecerem-se dos frios da velhice nas ruínas do silêncio. Pelas abóbadas ancestrais deslizam sombras, ecos de dores suportadas por antepassados que construíram a história que aduba a terra onde mergulho os pés como se fossem raízes profundas e amadas, troncos do meu caminho sulcado agora por uma diáfana luz azul onde revejo a insignificante malha das minhas experiências. Subitamente, a noite perdeu-se pendurada nos restos das estrelas que a madrugada apaga; o céu tornou-se límpido, de uma transparência cristalina que abraça de fragrâncias a manhã acariciando a poeira da esperança e da alegria.
Voar sobre as águas do tempo liberta-me da tragédia e confere noção exacta da relatividade da matéria permitindo escutar a voz encantada que aconchega o meu coração às vagas que arrastam os despojos do naufrágio da existência. Retomo a visão inicial da silhueta feminina, gentil e casta, acenando-me de longe numa despedida breve, segura de que encontrei finalmente o meu espaço de paz pejado de flores rasteiras e simples, de cores leves e simples, aromas suaves e simples cobrindo o solo onde se deitam convidando-me a descansar.
Chegam vozes dos hemisférios celestes entoando cânticos que ressuscitam sentimentos nobres os quais na sua corajosa humildade extinguem a chama das pequenas glórias guardadas no limbo do passado. Apoio então a minha alma nos restos húmidos do amor e deixo-me ficar no cais do sol a ouvir a partitura da vida abrindo ainda uma pequena janela sobre o curto futuro que me resta.
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