Quarta-feira, 23 de Fevereiro de 2011

Carta aberta ao Ministro Mariano Gago (2) - por Júlio Marques Mota

(Continuação)

 

Se aos estudantes não cabe resolver as questões do sistema, mas como são parte dele, cabe-lhes pelo menos a obrigação de procurarem não serem arrastados por ele. Mas esse sistema é feito por nós, por todos nós, não o esqueçamos. É aqui que o papel dos movimentos estudantis seria de uma extrema utilidade, mas lamentavelmente até estes movimentos não escapam à voragem da “modernidade” de Bolonha e de todo o sistema e são parcial ou totalmente eliminados ou transformados em máquinas de consumir dinheiro. A possibilidade de eliminação destes das direcções das Escolas, criada sob a pressão legislativa de Mariano Gago, com a consequente perda de práticas e de responsabilidades institucional e democraticamente assumidas[1] mostra que tudo isto é também um produto do actual sistema. Basta também comparar a prática dos estudantes de hoje com as intervenções dos líderes estudantis de outrora, para percebermos como estamos perante uma vaga de obscurantismo assente numa ideologia extremamente simplista, a ideologia neoliberal, que pode levar a democracia para becos de difícil saída quando, em vez disso, deveríamos contar com o voluntarismo e a dádiva que caracteriza a juventude para caminhar no sentido de uma democracia humanamente mais rica.

 

Onde estão agora os estudantes equivalentes, entre tantos outros nomes, a Jorge Sampaio, a Jaime Gama, a Medeiros Ferreira, a Alberto Martins, a Mariano Gago, e quem são os líderes estudantis de hoje? Quem os conhece? Aqueles, políticos de agora e estudantes de então, eram bem conhecidos, deram um rosto, um corpo, uma ideia ao movimento associativo, ao movimento que alimentou a formação cultural e social da classe política recente. Hoje, qual o quadro de actuação do movimento associativo estudantil na linha da “modernidade” imposta pelos homens de Bolonha entre os quais, ironia do destino, está agora Mariano Gago? A situação de Mariano Gago nos dois momentos do tempo referidos faz-nos lembrar uma situação contada por Macciochi numa sua visita à China muitos anos depois da revolução cultural. Esta reencontrou muita gente que no passado tinha descrito entusiasticamente no seu livro sobre a revolução cultural; parte daquelas pessoas estava a trabalhar em museus a recuperar peças historicamente importantes que durante a revolução cultural tinham estragado. O paralelismo é imediato: aqui e agora destrói-se o que levou, em termos de cultura e de política, anos a fazer através da luta estudantil contra o fascismo, o movimento associativo estudantil politicamente activo, e que agora se está política e culturalmente a esvaziar. A história tem destas repetições, tem destas inversões. Deixemos Hegel, deixemos Marx, sobre as repetições na História…

 

Sobre Bolonha não estou interessado em discutir mais. De resto, Bolonha pode resumir-se à questão da quadratura do círculo: como é possível ensinar melhor em menos tempo, com menos disciplinas, com menos carga horária por disciplina, com menos anos de curso, quando para complicar ainda mais o problema já de si insolúvel, os estudantes que nos chegam à Universidade são cada vez mais e em maior número de uma incapacidade intelectual preocupante, mesmo aflitiva eu direi.

 

 

É para mim inegável que o senhor, ao contrário do que terá sido antes, e antes foi uma força viva de uma Universidade que o sistema de então queria quase morta, é agora o responsável principal pelo seu esvaziamento intelectual, é agora um dos principais elementos responsáveis pela asfixia de uma Universidade que estava viva, mesmo que doente, e já doente pelos movimentos provocados pelas forças neoliberais que acabam por ter em si, senhor Ministro, o seu principal representante. Mas isto não lhe chega, o senhor e as forças que por detrás de si estão querem mais. Silenciados culturalmente, os estudantes com a reforma de Bolonha sofrem ainda por cima com uma degradação adicional provocada pela entrada de novos públicos incentivada pelo Contrato de Confiança para o Ensino (do qual falarei também mais à frente), de público cujas habilitações são creditadas pelo programa Novas Oportunidades ou de outros por terem mais de 23 anos e em determinadas condições que objectivamente não se sabe bem quais, pois ficam ao critério das necessidades de cada estabelecimento de ensino superior, quase todos eles carenciados de receitas. Este é mais um exemplo que me leva a pensar que o senhor Ministro nunca soube o que é ser professor. É impossível um ensino de qualidade com esta massa de tanta heterogeneidade e com diferentes condições de partida.

 

Esta lógica neoliberal é, de resto, bem descrita num poema que percorre a WEB e que tem uma das seguintes quadras:

 

É mais importante a estatística dos números

Que a competência científica dos alunos

O que interessa é encher as universidades

Nem que seja de ignorantes

 

Este é o sentimento popular. Que outro sentido pode ter a reforma de Bolonha que não este? Dê-se a palavra a alguém meu amigo que trabalhou numa multinacional quanto à empregabilidade, empregabilidade que aumentaria com Bolonha, segundo o argumento que amigos meus me quiseram bem vender, na cegueira de defender o indefensável:

 

Estive muito tempo do lado do «inimigo» e posso garantir-te que o grande capital, como se diz habitualmente, também não tira grande partido destas operações de recrutamento — gasta-se dinheiro na formação e em dezasseis formandos, às vezes nem um se aproveita — dinheiro gasto sem retorno. Depois, os tais tipos excepcionais, que ganham bom dinheiro, começam a exigir maiores percentagens ou então ameaçam que vão para a concorrência. Não estou a desculpar os grandes grupos económicos; a verdade é que esta situação também não os favorece — a maior parte das pessoas recrutadas, não apresenta produção — penso que formar pessoas competentes, ou seja, melhorar o Ensino e articular o papel da Universidade com as necessidades do mercado seriam, na óptica capitalista, a forma de romper o círculo vicioso. Assim, entramos numa espiral descendente. A caminho do caos?

 

Se ao nível da qualidade do ensino, a reforma de Bolonha não é compreensível, resta-me então as estatísticas como possível explicação para a sua existência.

 

Proporção de titulares de um diploma de ensino superior na população

Em %, por faixa etária

 

Fonte: Senado (França) (2010, p. 18).

 

De acordo com os dados e indicadores seleccionados pela OCDE (considerado o mais importante think thank mundial), em 2005, Portugal apresenta uma das mais baixas percentagens de titulares de um diploma de ensino superior dentro dos países considerados, qualquer que seja a faixa etária considerada. Vale a pena ainda referir que, genericamente, com a excepção da Alemanha, é na faixa etária mais nova, 25 a 34 anos, que se concentra o grupo de quem tem um diploma de ensino superior e o caso da Irlanda, onde mais de 40% dos titulares de um diploma deste tipo está nesta faixa etária, enquanto na média da população, com idades entre 24 e 64 anos, este valor é apenas de 29%. No caso de Portugal, estes indicadores atingem respectivamente 12 e 19%. O caso da Alemanha merece igualmente destaque, pois em ambos os indicadores apresenta valores inferiores à média qualquer que seja a faixa etária considerada e, para além disto, é o único país em que não há concentração de titulares de diplomas de ensino superior na faixa etária dos mais novos, o que denota uma menor número de conclusão de licenciaturas nos últimos anos de quem tem um percurso escolar normal.

 

Os dados da OCDE permitem também analisar a evolução da taxa de obtenção do primeiro diploma de ensino superior, através da situação em três períodos de tempo: 1995, 2000 e 2008. Nos países-membros, esta taxa progrediu 21 pontos percentuais nestes treze anos; em 2008, estima-se que cerca de 38% dos indíduos de cada faixa etária concluem uma formação deste tipo. Também de acordo com esta Organização, entre 2000 e 2008, as percentagens que mais progrediram foram as da Suiça, Itália, Portugal e Turquia. Curioso é o caso da Suiça, cujo aumento impressionante registado se explica também pela criação, em 1997, das Fachochsshulen (Faculdades de Ciências Aplicadas) e pela sua extensão a outras formações.

 

 

Evolução da taxa de obtenção do primeiro diploma de ensino superior

 

 

 

1. Dados de 2007; 2. Quebra de série em 2008.

Fonte: OCDE (2010, p. 63).

 

De acordo com este gráfico, Portugal tem evoluído de forma notória de 1995 para 2008, deixou de pertencer ao grupo dos países com menor taxa de obtenção de licenciaturas para se incluir agora no dos países com os valores mais elevados, destacando-se por isto no conjunto dos países. É, no entanto, de realçar que a subida mais clara deste indicador se verifica entre 2000 e 2008, sendo Portugal acompanhado nisto pela República Checa, República Eslovaca e Finlândia. Segundo a OCDE, a aplicação progressiva do Processo de Bolonha pode explicar esta evolução.

 

Se o objectivo da política seguida no Ensino Superior em Portugal nestes últimos anos era melhorar a estatísticas ao nível deste indicador, claramente o governo ganhou esta batalha. E as famílias? E quem conclui a licenciatura entretanto? Não será legítimo sentirem-se defraudadas? Muitas das famílias deste país endividam-se para ao seu filho poder “buyer the best”, comprar a melhor formação possível utilizando a expressão do professor Robert J. Franke; no fim, o que têm é um filho sem formação que valha e sem emprego que seja digno assim chamar, com a característica adicional de ter também perdido as poucas capacidades de trabalho que já tinha adquirido, o que ainda é mais grave.

 

Dir-me-á, estou a ser intencionalmente duro com o senhor Ministro, com um Governo, face à política seguida, uma política de facilidade, diria quase total, de acesso aos cursos superiores. Não o creio, até porque a política de entrada maciça na Universidade só se poderia justificar se houvesse insuficiência de quadros altamente especializados e se a nossa estrutura produtiva se situasse no que em termos económicos se chama a “fronteira tecnológica”, isto é, se a nossa estrutura produtiva fosse genericamente ramo a ramo, sector a sector, dominantemente utilizadora das técnicas de ponta. Mesmo neste caso, teria que haver extremo cuidado de modo que o investimento maciço no ensino superior não fosse sinónimo de desqualificação (ao nível científico e das competências que necessariamente lhes estão associadas) dos diplomas obtidos.

 

Mas como não estávamos, não estamos, nem estaremos a curto prazo disso, temos todos a certeza, infelizmente, nesta situação de “fronteira”, exige-se, não um upgrading do número de diplomas, mas e acima de tudo um upgrading de conhecimentos e de competências no país e isto se quisermos crescer através das tecnologias derivadas da nossa própria inovação, se quisermos portanto aproximar-nos da “fronteira tecnológica” referida. Assim, uma diversificação do ensino, de formações curtas e longas, sem degradação de qualidade, e de elevados níveis de exigência profissional nas formações curtas e de elevado nível de formação científica nas formações longas será seguramente mais rentável para o país. Em suma, fazer o contrário do que tem sido feito, optar pela democratização do ensino, o que exige responsabilidade e profundidade, em vez de se ter optado pela sua massificação, pela sua generalização, exigiria um outro modelo de política, que não o neoliberal subjacente à União Europeia e à OCDE, assim como à política do actual Executivo em Portugal. Como remar contra a maré nos tempos que correm vale o que vale, como correr a favor do vento é mais “saudável”, escolheu-se como opção a generalização do ensino superior, criando-se assim politicamente uma situação de fraude para as famílias no presente e queimando-se o futuro do país, um futuro já próximo, e com um detalhe de grande importância: eventualmente gastar-se-á mais dinheiro desta maneira e com estes tristes resultados.

 

Em vez dessa coragem para criar as verdadeiras linhas de futuro, que passam pela existência de condições de modo a garantir a formação de uma vasta geração de jovens intelectualmente capazes de o conscientemente o definir e de o construir, qual foi a opção seguida? Continuar a massificação do ensino que já de longe tem vindo a ser seguida. O Contrato de Confiança para o Ensino, já anteriormente citado de passagem, assinado por V.ª Ex.ª com as instituições de ensino superior, algumas com dificuldade em preencher as vagas oferecidas presentes ou futuras, diria eu, virá necessariamente prolongar a política de ensino superior até aqui realizada e criar ainda uma maior heterogeneidade dos percursos de partida e de chegada dos estudantes a este tipo de ensino, virá ainda adensar mais as dificuldades existentes quer no que diz respeito à qualidade de ensino a garantir, quer no que diz respeito aos empregos adequados por todos estes estudantes a conseguir. Veja-se o que disse o senhor Ministro, aquando da assinatura deste Contrato:

 

Com efeito, e em resultado do passado, a percentagem da população activa em Portugal que dispõe de qualificações superiores é ainda baixa no contexto internacional, como é também reduzida a frequência do ensino superior por activos, quer para a obtenção de qualificações de nível superior, quer para a actualização científica e profissional dos já diplomados. 

 

Urge assim superar estes factores de atraso e ainda responder ao alargamento da procura juvenil induzida pela redução dos índices de abandono e insucesso escolar nos ensinos básico e secundário e pela extensão para 12 anos da escolaridade obrigatória.

Para o reforço da obtenção de qualificações superiores por activos, desenvolveram-se instrumentos de intervenção cujo sucesso é já inegável: cursos de especialização tecnológica (CET) especialmente no Ensino Superior Politécnico, abertura do Ensino Superior a maiores de 23 anos em condições próprias, ensino à distância, organização em créditos e ciclos de estudo. Aponta-se para a expansão, em larga escala, destes instrumentos com vista ao mais rápido alargamento do Ensino Superior em Portugal.

 

O programa do Governo quantifica essa expansão: triplicar o número de estudantes em CET, multiplicar por quatro o número de estudantes inscritos em cursos de ensino superior à distância.

 

E será que não nos bastam já os largos milhares de licenciados sem emprego digno possível, com alguns deles, talvez, a transformarem-se em caixas múltiplas de dinheiros múltiplos, e muitos outros a ficarem empregados de fazeres diferentes, banalizados, que caminham já para a desvalorização rápida dos seus diplomas e necessariamente para a desvalorização profissional? E tudo isto enfim para a desvalorização do muito ou pouco que aprenderam nas universidades. Que fica de tudo isto então, depois de muito tempo passado em situação de desempregado ou de empregado em situação de forte precariedade? Da Universidade, dos saberes e das competências aí eventualmente adquiridas, talvez fique depois muito pouco. Ficam pessoas de vidas diversamente plurifacetadas a esconder, para si e para os outros, as profundas revoltas interiores por futuro deixarem de ter e que, à escala da dimensão dos homens e dos Deuses, devem ser pessoas humanamente todas elas dignificadas também. E será que não nos bastam já os milhares de jovens desesperados à procura de emprego desqualificado que seja e onde quer que seja? E será que não nos bastam já os milhares de jovens licenciados que só têm uma ambição, fugir do país, fugir para alguma coisa serem capazes de poderem vir a construir? Para quê criar ainda mais milhares de licenciados anualmente e com ensino à distância? Em alternativa a esta opção claramente criticada no relatório Education et croissance, que vou seguir de perto (Aghion e Cohen, 2004), os seus autores consideram que foi a coragem dos países do Sueste Asiático nesse campo em fazerem a opção inversa da sua, senhor Ministro, em investirem no ensino tendo em conta a distância face à “fronteira tecnológica” acima mencionada, que estará na base do seu sucesso, contra a prática dos países de origem latina como o Brasil e o México que investiram maciçamente no ensino superior, descuidando relativamente as formações intermédias que deveriam ter mais peso, tanto mais em países onde os recursos para investimento assim como as tecnologias de ponta escasseiam.

 

Tudo isto se sabe e desde longa data, mas isto não corresponde à lógica neoliberal, isto de se ver assumir o Estado como entidade participante do processo e como constante regulador dos diversos tempos dos mercados e das diversas formações tendo em conta as variáveis longas da economia. Preferiu-se antes seguir o modelo geral, o do mais curto prazo possível e esperar que os mercados façam o resto.

Podemos questionar, de acordo com Stéphane Beaud, citada longamente em Aghion e Cohen (2004), se os nossos licenciados, tendo sido sujeitos à desclassificação da Universidade, não estarão eles a pagar um elevado preço, no momento da sua inserção profissional, pelas diferentes formas de sub-selecção que acompanharam o que os governos chamam agora de “democratização do sistema de ensino”.

 


[1] Um outro exemplo: compare-se o que era o debate político na eleição de um Reitor na Universidade de Coimbra, em termos de cidadania e de cultura política para a juventude, com o que poderá acontecer agora, uma vez que pela legislação aprovada com Mariano Gago esta eleição passa a ser feita através de um Conselho Geral, onde grande parte dos seus membros (10 em 35) não faz parte sequer da Universidade. Tempos de democracia e de participação versus tempos de apatia e de silêncio.

 

 

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 21:00

editado por Luis Moreira às 21:37
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