Coimbra, 20 de Fevereiro de 2011
Ex.mo Senhor Ministro José Mariano Gago
Sobre a Universidade, a reforma de Bolonha e a formação de elites na Europa
Senhor Ministro, tomo a liberdade de lhe escrever esta longa carta, que talvez até não leia porque escrita por alguém que, à luz da sua política, das suas hierarquias e do seu modelo de referência, o neoliberalismo puro e duro, deva ser ele próprio um excluído do seu sistema de ensino.
Escrevo-a, digo, enquanto professor, cidadão, pai e avô, porque não me consigo rever no quadro de valores em que assenta a modernização do Ensino Superior em Portugal concebida e assumida pelo actual executivo e por V.ª Ex. dirigida, a reforma de Bolonha e toda a arquitectura que com ela já veio e com o que ainda com ela estará para vir. Escrevo-a porque não consigo alguma vez aceitar a política de simplificação das formações de ensino superior que a Universidade é quase que obrigatoriamente levada a realizar, no quadro das estruturas por si criadas. Escrevo-a porque me recuso a encarar que a Universidade passe a ser ou uma fábrica de desempregados, como no actual sistema francês, ou pior ainda, uma fábrica de não empregáveis sequer, como começa a ser no caso português, agora ou amanhã, deixando a maioria da nossa juventude ao nível intelectual completamente indefesa, imatura e incapacitada até para se defender face à selva em que se está a transformar o mercado de trabalho em Portugal. E tudo isto sem que as autoridades competentes mostrem sinais claros de estarem dispostos a defendê-la. E não se trata aqui de falar de uma questão de gerações, é do mercado de trabalho para todos que estamos a falar. Não se trata aqui de falar de geração rasca, de geração à rasca, trata-se aqui de falar de um país que está a ficar quase todo ele completamente à rasca e não por uma questão de problema de gerações, mas sim pela política seguida, pelo modelo de política económica e social que está em vigor e que está a ser imposto. Trata-se aqui de falar de condições de acesso ou manutenção nos mercados de trabalho quando estes são o resultado deste mesmo modelo que está a ser gerido, afinal, pelos mercados financeiros, onde a união monetária europeia também não é mesmo nada alheia, é certo, e a forma como foi tratada a questão dos altos salários dos gestores públicos na Assembleia da República, num país onde a fome começa a grassar é deste modelo um muito claro exemplo. Escrevo-a porque me sinto numa Universidade em profunda, muito profunda, crise, ainda com fortes tendências a uma maior degradação da sua qualidade, dados os vendavais que já se sentem que sobre ela vão desabar, trazidos por mais um mecanismo imposto pela sua política de modernidade, os ratings, as avaliações, sem sequer se ter feito publicamente a avaliação dos resultados do que está a ser a avaliação no ensino secundário. Escrevo-a porque sinto tão intensamente esta degradação a chegar, trazida ainda aqui até pela sua nova legislação, que me interrogo sinceramente sobre o que da Universidade vai restar se assim continuar. Escrevo-a porque, face a tudo isto, sinto não ter no meu caso pessoal outra solução que não seja a de me ir embora, deixando aqui publicamente e bem claro, mais uma vez, as razões do meu profundo descontentamento.
A Universidade e a reforma de Bolonha
68 anos feitos, hoje. Tempo de balanços, de contas feitas e desfeitas, tempo de razões assumidas e de razões perdidas, tempo de me confrontar não com o meu passado[1] mas sim com o meu futuro, tempo como professor, de olhar não para as cadeiras que não dei, mas sim para as cadeiras que outros irão leccionar, tempo de me questionar não sobre os estudantes que reprovei mas sim sobre aqueles que injustamente passei e a estes, com simplicidade, sinto que devo pedir desculpa. E a ser assim, é tempo de me confrontar com o meu ministro da tutela, que com o seu trabalho está ardilosamente a destruir o futuro de gerações que se nos seguem, o nosso futuro afinal, e estas se o souberem e puderem serão elas que nos irão talvez proteger ou talvez contas pedir.
Quando jovem operário, um pouco perdido na amargura das horas trabalhadas a três escudos por hora, o custo de dois cafés a preço normal, onde cada livro lido, cada livro apreendido, muitas vezes à custa de um sono perdido, de um sono não havido, era mais um passo para quem procurava as referências do que era a vida, era mais um olhar de quem se queria situar num mundo que não compreendia, nessa altura um livro profundamente me marcou. Teria entre 17 e 19 anos, senhor Ministro, e o livro era A Condição Humana, um livro onde Malraux questionava o que é um Homem. Desse tempo, fiquei com a ideia de que o Homem era a intersecção do que foi e aprendeu com o passado dele próprio com o que deseja como seu próprio futuro, como seu próprio devir — fiquei com a ideia a partir de Kyo, ou do seu pai, duas das personagens relevantes desta obra literária, não sei qual delas, nem para aqui isso é agora relevante. O que é relevante é que, em cada momento, o Homem vale também pelo que quer como futuro e é esse futuro que com V.ª Ex.ª venho questionar.
Há já muito tempo que nos cruzámos nos corredores do Instituto Superior Técnico, ambos a aspirarmos a um outro tipo de sociedade, se a minha memória visual não me começa já a falhar, ela que foi feita passo a passo, sofrimento a sofrimento, para que deles não me esquecesse e com eles aprendesse, nos cruzámos várias vezes e eventualmente também em muitas camionetas, que todos nós estudantes de um devir solidário, a acontecer poucos anos depois, em Abril de 1974, enchemos numa marcha de solidariedade para com os sofridos do fascismo e das águas das cheias que tudo levaram pelos finais dos anos 60, na zona de Vila Franca de Xira. Por aí nos cruzámos, seguramente. Os filhos da burguesia do fascismo de então deslocavam-se em camionetas contratadas pelas associações de estudantes para irem ajudar os operários com rendimentos de pobreza, verdadeiras vítimas do regime de Salazar, atingidos pelas cheias, e com eles ia eu também. Aí me apercebi de um certo sentido da História que um pouco mais tarde haveria de redescobrir a um outro nível, muito mais abstracto, nos contactos com Hegel e sobretudo com as explicações dadas por Jean Hyppolite ou por Kojève, o sentido da História, o sentido também da dialéctica do senhor e do escravo, através de páginas e páginas difíceis de entender que me levariam a seguir até Marx e muito mais tarde, já estudante em Economia, a Piero Sraffa, a Joan Robinson, a Kaldor, a Maurice Dobb e a Mário Nuti, que pessoalmente conheci recentemente em Coimbra. Na pobreza extrema daquelas gentes, pelo singelo das casas que lavámos, das ruas que limpámos, no sentir das pessoas que apoiámos, na simplicidade das pessoas com quem falámos, na força com que assumiam os desaires e o destino que os outros lhes impunham, apercebemo-nos, senhor Ministro, e se lá estava terá seguramente sentido o mesmo, que por ali também passava a força de um futuro a fazer. Bastava só saber ler e olhar para os milhares de papéis, de jornais do Avante, de documentos outros, dir-se-ia na época, subversivos, que nos apontavam uma certa ideia de futuro que mais tarde a História também viria a demonstrar que destino também não era, mas que estava ali, como uma parte da força imensa que sabia dizer não à barbárie do fascismo, organizada ou sustentada pelos pais de muitos daqueles que ali estavam a prestar ajuda.
De forma não visível, naquelas regiões de extrema pobreza e de extrema dignidade também, sabia-se, sentia-se, que a História também passava por ali, também se fazia por ali, entendida esta no sentido hegeliano e marxista do termo. As ligações sentiam-se, eram subterrâneas, disponíveis para se tornarem uma força viva quando os sinais da História o anunciassem, o admitissem. Anos depois, isso aconteceu, deram corpo a um movimento que se tornou depois Revolução. Face às águas sujas de Vila Franca, através das histórias que pressenti, aí eu senti que ainda estava longe, muito longe mesmo, do mundo que pensava que entendia. Aí me perguntei, o que é um Homem? E como é que os homens singularmente ajudam a fazer colectivamente a História, o seu próprio devir, afinal? Tanto me perguntei, que me desorientei. Já tinha lido e relido algumas coisas de Malraux, em francês ou em português, nem sei bem.
No regresso, a camioneta deixou-me na Rua Alexandre Herculano. Na época uma só peça de roupa tinha de jeito: uma camisola de caxemira, que pessoa amiga minha me oferecia anualmente, no aniversário. Quis ir ao Pestana e Brito, entrar no mundo dos ricos. Cheguei, pedi uma camisola de caxemira, de fio duplo, das marcas Bryant, Pringle ou Balantines. Todo sujo das lamas, o empregado tinha ar de estar a ver alguém vindo de um outro planeta. Ficou parado, a olhar. Irritei-me levemente. Puxei a camisola que tinha vestida pela parte de trás do pescoço e disse: desta marca, por exemplo. Era uma das marcas referidas e com a etiqueta Pestana e Brito. O empregado atrapalhou-se. Chamou um colega, pedindo-lhe que trouxesse todo o tipo de camisolas de caxemira que houvesse e depois desapareceu. Nunca tinha visto tanta camisola junta. Analisei-as uma a uma e durante muito tempo e depois disse: não gosto de nenhuma, e saí. Sentido de tudo isto? Nenhum, alguma raiva contida, de tudo o que durante o dia tinha sentido, talvez isso, mas disso não era o empregado o culpado, algum sentido de desorientação também por tudo o que tinha vivido e que não tinha bem apreendido.
Mas no tempo em que ambos éramos estudantes, senhor Ministro, os estudantes inquietavam-se, os estudantes respondiam às questões sociais a que aderiam, os estudantes desafiavam e sobretudo aprendiam a questionar, procuravam de forma difusa ou consciente mesmo o sentido da própria História que por ali corria. No após tempestade de Vila Franca, senti ter encontrado uma forte unidade silenciosa em todas as vítimas que apoiámos face ao fascismo, a mesma cumplicidade detectada nos silêncios entre elas, estando no entanto sempre disponíveis para uma primeira abertura política francamente pressentida. Naquele dia, naquela tarde, questionei o sentido da História, o sentido de se ser homem assim, o sentido de se arriscar a vida face ao fascismo, o sentido do que era a vida assim, eu que verdadeiramente nem vida tinha. A mesma cumplicidade também senti eu anteriormente, em 61-62, com a inauguração da reitoria da Universidade Clássica. Agora, não entre as gentes de Vila Franca a quem as águas mostravam com o que traziam para a luz do dia de que lado é que politicamente estavam, mas entre estudantes que face ao terrorismo de Estado se defendiam muitas vezes com o silêncio. Naquele caso, os estudantes como protesto tinham decidido não estar na sessão, de acordo com a RIA, mas uma ou outra associação como a de Medicina falhou e à sessão se apresentou. Cá fora e em sinal de protesto, os estudantes estavam sentados em duas alas, por onde passaria o ministro Hermano Saraiva, se não me engano. Colocámos a bandeira de Portugal no chão, eu era dos que a segurava para o vento a não levantar. O ministro teria que a pisar mas não, veio a PIDE que a conseguiu retirar, sem barulho devido à presença do corpo diplomático. Depois de a sessão de abertura se iniciar, um a um dos perturbadores da ordem oficial foram pela PIDE abordados e a identificação obrigados a entregar. Assim aconteceu e nesse dia, nessa noite, tudo se me tornou complicado: eu não era um filho da burguesia, as coisas eram diferentes para uns e para outros, como mais tarde Sttau Monteiro bem o mostrou.
Nessa noite, sem BI, desloquei-me ao café Tatoo, havia pouca gente e havia curiosamente uma cumplicidade que só com a cumplicidade se entendia, parecia que ninguém se conhecia, dentro dos que eu conhecia e que tinham estado no mesmo barco que eu. Mas assim não entendi. O mesmo aconteceu no café Nova Iorque. Voltei para casa e de medo estava cheio o meu imaginário. Amanhã serei preso, pensava. Nessa noite, senti-me a pessoa mais sozinha do mundo, e se nessa altura já tivesse conhecido o Principezinho, teria sonhado em ser por ele protegido, da mesma maneira que as suas plantas, as suas flores, protegidas do vento da vida. Mas não o conhecia ainda. No dia seguinte, na fábrica dos três escudos a hora, a meio da tarde, o chefe do escritório chegou e disse-me: “está ali a inspecção do trabalho; não te esqueças de dizer que trabalhas apenas três dias por semana”. “Estejam descansados, estão enganados. Vão-me levar para interrogatório na PIDE”, retorqui eu. Sublinho assim a minha preocupação com a entidade patronal que hoje significaria: “estejam descansados com a vossa ilegalidade que a nossa precariedade tornava legal, estejam descansados que nós vos protegeremos”. Tempos de fascismo, tempos de precariedade, eram assim. Uma tarde, uma noite na PIDE e nem a PIDE entendia: o meu patrão tinha-lhes pedido para não lhe levarem aquele que era para ele um dos seus melhores empregados, operário com salário de fome, e este andava nas greves dos “meninos” da Universidade. Na sala onde me colocaram, nos corredores por onde passei, outros do dia anterior encontrei e o mesmo silêncio, o mesmo desconhecimento de cada um, confirmei. Aí contrariamente à noite anterior, percebi, entendi que o desconhecimento de cada um era uma defesa para cada um dos outros, era uma outra forma de solidariedade, tão forte como a primeira, como aquela que nos colocou a segurar a bandeira. A diferença era ser silenciosa, foi bem o que senti. A mesma força silenciosa que mais tarde viria a presenciar em Vila Franca e já acima relatada. Interrogatório longo, as coisas não batiam certo. Disse-lhes que tinha acabado de deixar a profissão de marçano, que era católico, que quando me apanharam eu vinha do Rego para assistir à missa no Campo Grande e onde também visitaria as freiras que viviam ali bem perto, conhecidas da minha vida de marçano. Fiquei junto à Reitoria, fiquei por ali, a olhar surpreendido como uma criança que ia ver um espectáculo que não esperava. Para eles, estar preso não batia certo, eu seria apenas um marginal na roda da História, na roda do sistema, na roda da vida, um loser, sem mais nada. Eu era pois uma incógnita que não cabia no modelo dos inquiridores da PIDE, que não se enquadrava na visão que tinham do mundo, das pessoas. Depois largaram-me.
Tudo isto, senhor Ministro, porque também queria saber o que era um homem face ao seu destino, destino que necessariamente em cada dia criava e que criava com as interrogações que os outros me ensinaram a colocar, fossem eles Euricos de Figueiredo, Anas Dinis, Josés Eduardo Freire, Jorges Almeida Fernandes, Sottos Mayor, creio mesmo Jaimes Gama, ou fossem eles tantos outros que a história do movimento associativo estudantil traçaram e na luta contra o fascismo se evidenciaram. Eram as interrogações dos estudantes daquele tempo, do seu e do nosso tempo de então, que para aquelas vivências me levaram e que nem na PIDE e para a PIDE se compreendiam. Dito de outra maneira mais simples: eu próprio serei intelectualmente um produto de todos aqueles estudantes, de si também senhor Ministro, eu o jovem operário era levado assim a questionar no limite da sua capacidade o sentido da vida, o sentido da História, o sentido da dialéctica hegeliana, que um jovem de Direito de nome Furtado me terá carinhosamente ensinado, nas áleas do jardim do Campo Grande. Nesse tempo, os estudantes do nosso tempo comum estudavam, lutavam, liam, questionavam, e muitos deles, como eu, por Hegel e Marx passaram, fosse directamente ou por interpostos autores. Andámos perto um do outro, emocional e ideologicamente, vivemos e partilhámos as mesmas lutas e tanto assim que até com a sua primeira mulher muitas vezes me cruzei, pois era visita de pessoas amigas comuns. Andámos perto, muito perto senhor Ministro, no tempo em que a Associação do Instituto Superior Técnico era um exemplo de formação de cidadãos, era uma das bases da consciência política a partir da qual e de onde se terão formado muitos cidadãos que politicamente ao país deram alma num tempo de asfixia intelectual, como foi o período negro do fascismo que Portugal atravessou e contra o qual cada um de nós lutou.
Encontrámo-nos assim sucessivamente e é bem claro que anos e anos depois nos desencontrámos por completo. Sobre os dois períodos de tempo, sobre si, sobre o movimento associativo, eis pois o que escrevi num texto sobre a reforma de Bolonha (Mota, 2010, p. 11 e s.) e a propósito do vazio cultural que paira nas universidades de hoje:
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau