coordenação de Augusta Clara de Matos
Hoje Falamos de...uma exemplar convivência
Abdurraham Badawi
Egípcio, é filósofo e historiador da filosofia. Foi diretor dos departamentos de filosofia de diversas universidades no Egito, na Jamahiriya Árabe, Líbia e no Kwait, além de professor convidado na Sorbonne, em Paris. É autor de cerca de 100 obras, em francês e em árabe, sobre temas como existencialismo, filosofias grega e árabe e filosofia alemã contemporânea.
Abdurraham Badawi A Escola de Toledo
A transmissão do legado cultural
árabo-grego de Al-Andalus à Europa
ocorreu principalmente graças à
escola de tradutores de Toledo.
SOMENTE no século XII surgiu, em Toledo, a primeira escola espanhola de tradutores do árabe para o latim. Essa escola foi fundada por D. Raimundo, monge beneditino nascido em Agen, no sudoeste da França, que foi arcebispo de Toledo de 1126 a 1151. Convencido da importância da obra dos filósofos árabes para a compreensão de Aristóteles, ele decidiu traduzir suas obras para o latim.
Entre as diversas pessoas convocadas para esse trabalho, uma das mais eminentes foi Dominicus Gundisalvi, arcediago de Segóvia. Ele traduziu do árabe para o latim importante parte do Kitab al Chifa' (Livro da Cura), obra enciclopédica de Ibn Sina (Avicena), o Maqa-sid al-falasifah (As intenções dos filósofos), de al-Ghazali, e o Ihsa’ al-ulum (Tratado sobre o recenseamento das ciências), de al-Farabi.
Mas Gundisalvi não conhecia o árabe. Por isso, valeu-se de intermediários, muçulmanos ou judeus, para dispor de uma tradução do árabe em castelhano e, em seguida, traduzir para o latim. Entre esses tradutores judeus intermediários, constantemente ressurgem os nomes de um certo Salomão e, sobretudo, de Johannes Avendeath (ou Avendauth, ou Johannes bem David, ou Johannes Hispanus, ou, ainda, Jean de Séville), cuja identificação suscita muitas controvérsias.
O membro mais importante desse colégio de tradutores foi sem dúvida Gerardo di Cremona (1114-1187). Graças a uma breve notícia deixada por seus alunos sobre sua vida e sua obra como tradutor, sabemos que Gerardo foi para Toledo, após terminar os estudos na Itália, para conhecer mais sobre o Almageste. Esse tratado de astronomia composto por Cláudio Ptolomeu, o célebre astrónomo, matemático e geógrafo grego do século II, era uma imensa obra que dispunha de uma versão em árabe. Ante a profusão de livros científicos em árabe que descobriu em Toledo, Cremona começou imediatamente a estudar árabe, a fim de lê-los e traduzi-los para o latim. Em seguida traduziu mais de 70 obras, entre elas o Almageste, cuja tradução terminou em 1175.
Suas traduções abrangem praticamente todo o campo científico daquela época: diversos livros de Aristóteles (Da Física, Do céu e do mundo, Da geração e da corrupção e Os meteoros), além de al-Kindi, Ptolomeu, Isaak Israeli, Ibn Sina, Galeno e muitos outros.
Outro grande tradutor foi Michel Scot (c.1175-c.l235). Nascido na Inglaterra, ele passou pelas Universidades de Oxford e de Paris, antes de se estabelecer em Toledo, onde aprendeu o árabe e o hebraico, vindo a traduzir muitas obras do árabe para o latim. No final da vida, foi convidado à corte do imperador germânico Frederico II de Hohenstaufen, na Sicília - outro centro de traduções do árabe para o latim.
Michel Scot traduziu principalmente grande parte dos comentários de Ibn Rushd (Averróis) sobre a obra de Aristóteles e o Tratado sobre as esferas, de al-Bitrudji (Alpetragius, ou Alpetrage), que exerceu grande influência sobre os conhecimentos astronómicos.
Um trabalho coletivo
Essas traduções toledanas levantam o problema da paternidade. Num estudo sobre Averróis publicado no século passado, o escritor e historiador francês Ernest Renan observou: "Certamente os latinos que viajaram a Toledo não tinham qualquer escrúpulo em se apropriar do trabalho de seus secretários (...) e o nome do tradutor frequentemente era uma ficção.
"Quase sempre um judeu, amiúde um muçulmano convertido, desbastava a obra e aplicava a palavra latina ou a palavra vulgar sobre a palavra árabe. Um clérigo cuidava do texto em latim e dava seu nome à obra. Por isso, uma mesma tradução é frequentemente atribuída a pessoas diferentes."
Essa opinião é partilhada pelo grande medievalista norte-americano Charles Homer Haskins em seu livro sobre a Renascença do século XII e também por algumas traduções latinas do árabe por intermédio do espanhol, em poder da Biblioteca Nacional de Paris.
O extraordinário trabalho de tradução realizado em Toledo foi efetivamente a obra conjunta dos árabes muçulmanos, judeus e latinos cristãos. Seria injusto atribuir sua paternidade somente a estes últimos, mesmo quando os manuscritos ou os historiadores mencionam apenas seus nomes. Gundisalvi, Gerardo di Cremona, Michel Scot e muitos outros tradutores sempre recorreram a ajudantes e intermediários árabo-muçulmanos ou, ainda com maior frequência, judeus. O trabalho dos tradutores cristãos latinos às vezes se limitava a colocar em bom latim o que seus ajudantes haviam traduzido em espanhol ou em mau latim.
Por isso, o grande movimento de tradução do árabe para o latim começou na Espanha no século XII, e Toledo foi seu centro mais ativo. Mas esse movimento teve continuidade em outras cidades da península, como Barcelona, Tarragone, Scgóvia, Leóne Pampelune, alcançando depois os Pireneus para se estabelecer em Toulouse, Béziers, Narbonne, Montepellier e Marselha.
Graças a essas traduções, a Europa pôde conhecer tanto as obras dos filósofos, matemáticos, médicos e astrónomos gregos quanto as de seus comentadores e competidores árabes. Como também escreveu Haskins, "a recepção desse saber pela Europa ocidental representa uma importante guinada na história do pensamento europeu".
(in O Correio da UNESCO, Ano 20, Nº. 2 Brasil, Fevereiro 1992)
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