Sábado, 19 de Fevereiro de 2011

Os invisíveis gnomos da tradução – por Carlos Loures

 

 

Segundo diz Roger Martin du Gard, em O Drama de Jean Barois, a virgindade de Maria teve origem no erro de um tradutor, um obscuro monge, ao traduzir o Novo Testamento do grego para o latim, confundiu a palavra jovem com virgem. E aí temos um dos maiores imbróglios da liturgia católica, o culto mariano…O monge terá cometido o seu erro, mas soadas as Completas terá ido comer o seu caldo, o seu naco de pão, deixando o mundo com mais um problema.

Hoje, falo de tradução. Nesse mundo mágico da criação literária, onde acontecem prodígios como a «Eneida», o «D. Quixote de la Mancha», o «Hamlet» ou a «Guerra e Paz», movem-se, quase como invisíveis duendes, os tradutores que, «à force de reins et de sueur», como disse Gustave Flaubert, conseguiram que muitos milhares de milhões de leitores fossem ao longo das gerações conhecendo a Ilíada, Dante, Cervantes, Tolstoi, Kafka, o que não é proeza pequena, sobretudo se nos lembrarmos que é cometida por seres praticamente invisíveis.

Invisíveis, porque, tal como acontece com os árbitros de futebol, o melhor que pode acontecer a um tradutor é passar despercebido. Quanto melhor tiver feito o seu trabalho, menos consciência deverá o leitor ter da sua intervenção. A tradução ideal, portanto, assemelhar-se-ia a um vidro muito perfeito, transparente e limpo, através do qual se pudesse ler o original, mas na língua de chegada. Um vidro que não distorcesse as imagens. Que não se visse, a bem dizer.

Na maioria dos casos, a tradução empobrece o texto original. Há casos, porém, como na tradução que Blaise Cendrars fez de «A Selva», de Ferreira de Castro, ou a que Jorge Luis Borges fez de «The Wild Palms», de William Faulkner. Que são exemplos em que o vidro que se interpõe entre a língua de partida e a de chegada não está limpo nem sujo, mas sim esmerilado pelo estilo genial dos tradutores. No caso da tradução de «A Selva», com a sua ironia cáustica, Almada Negreiros, aludindo ao estilo rude e primário dos primeiros livros de Ferreira de Castro, dizia que o ideal teria sido pegar na tradução em francês, feita por Cendrars, arranjar um bom tradutor e verter então a obra para português.

Gabriel García Márquez foi ao ponto de declarar que a versão inglesa de «Cien años de soledad», feita por Gregory Rabassa, ultrapassa a sua obra em qualidade literária. Tradutor, traidor, como diz o famoso aforismo italiano: estaremos nestes casos, como o de Cendrars ou o de Rabassa, perante boas obras literárias, mas más traduções, ou apenas em face de excelentes traições?

Sou um leitor compulsivo e tenho sido, ao longo da minha vida profissional, tradutor compulso – isto é, numa certa fase da minha vida, compelido pela necessidade de ganhar a vida, e noutra compulsado pelas circunstâncias – as mais de as vezes por ser necessário executar o trabalho com urgência e não haver ninguém à mão capaz de o fazer dentro do prazo exigido. Como leitor sofro muito com as más traduções, com as trapaças, com a falta de brio profissional; como tradutor, sofro com a perpétua e justificada desconfiança do meu saber. Mesmo quando se trata de um vocábulo estrangeiro milhares de vezes por mim usado, vou sempre verificar se não haverá qualquer acepção menos vulgar que me tenha escapado. Sofro, sobretudo, quando, depois de editado o trabalho, descubro erros que deveria ter evitado.

Não vou aqui referir erros de tradução, pois isso obrigar-me-ia a falar de nomes, coisa que não quero. Depois, sei em que circunstâncias muitas vezes as traduções são feitas. Prazos exíguos, pagamentos parcos e ainda por cima incertos. Até há duas décadas atrás, as traduções eram geralmente pagas à página (30 linhas de 70 caracteres = 2100 caracteres). Hoje, com o trabalho feito em computador, usa-se mais como unidade de referência os conjuntos de 2000 caracteres. Mas, de uma forma geral, continua a ser um trabalho mal pago. Isto, quanto a mim, não desculpa que se façam as traduções que por aí aparecem. Já trabalhei por todos os preços desde o zero até ao bastante bem pago. O cuidado que ponho nos meus trabalhos é sempre o mesmo. Com esta afirmação, não pretendo ser modelo de coisa nenhuma, até porque conheço muita gente que procede exactamente como eu. O pior são os outros.

Estas reflexões sobre a tradução foram-me sugeridas por um livro que acabei de ler. Não vou dizer o título, pois isso poria em cheque o tradutor. Apenas um pormenor. Na obra, um romance, aparece repetidamente um sótão que se verifica pela descrição romanesca ficar no subsolo. Como o livro é traduzido de um original norte-americano, a confusão seria entre «attic», «loft» ou «garret» e «cave» (verifiquei, depois, compulsando o original, que a palavra usada foi «cave»). Embora não fosse exactamente o que se pretendia, a palavra portuguesa «cave» serviria razoavelmente, não se verificando o clássico problema dos «falsos amigos» – o ideal seria talvez «caverna».

O que se teria passado para que uma caverna subterrânea aparecesse transformada num sótão? Muito simples: a tradução não foi feita do inglês, como expressamente se indica na ficha técnica, mas sim do castelhano. Em castelhano, cave diz-se «sótano» e «sótano» – está-se mesmo a ver, não está? – só pode ser sótão! Temos, portanto, um tradutor que por ignorância ou preguiça substitui o original por uma tradução espanhola, mas que não sabe castelhano (o português da tradução é muito razoável, no entanto). Exemplos como este, de más traduções e de trapaças como esta são às centenas.

Por tudo o que fica dito e pelo muito que aqui não cabe dizer, se entende como é difícil traduzir. E como é difícil avaliar traduções, pois já tenho deparado com traduções globalmente mal feitas onde há problemas muito bem resolvidos. O contrário também acontece. Não entendo, por isso, como por vezes são atribuídos prémios de tradução, usando talvez critérios jornalísticos (falo de prémios atribuídos por jornalistas), mas sem a intervenção de especialistas, nomeadamente universitários. Como sabem eles que as traduções estão bem feitas? Mistérios.

publicado por Carlos Loures às 13:00

editado por Luis Moreira às 12:33
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10 comentários:
De augusta clara a 19 de Fevereiro de 2011
Se a tradução que referes tivesse sido feita na célebre Escola de Tradução de Toledo, agora não andávamos com o mito da Virgem Maria às costas porque teria contado com as traduções que os árabes faziam do grego e, depois, os judeus, que tinham estudado árabe, passavam para o latim. Pela minha parte, preocupo-me sempre em ver quem é o tradutor dum livro que vou começar a ler. Se é verdade não conheço a maioria deles, há nomes que me deixam perfeitamente descansada. Traduzir não pode ser para qualquer um só porque domina bem a língua de origem e, por isso, é urgente reconhecer e prestigiar a profissão de tradutor
De Carlos Loures a 19 de Fevereiro de 2011
Tens toda a razão. Faço o mesmo - antes de começar a ler um livro, vejo quem o traduziu. Quando conheço, por vezes, nem leio o lvro, pois sei que o que o autor nos quis transmitir vai ser completamente deturpado. Há nomes que me tranquilizam. Em suma, é uma actividade onde há grandes profissionais e franco-atiradores que deviam ser erradicados. Os editores têm culpas - pagam pouco, são permeáveis a «cunhas»... O costume.
De Luis Moreira a 19 de Fevereiro de 2011
O meu professor de Francês quando nos falou nas traduções e na actividade de tradutor disse-nos que o pior que tinha lido foi : ...o homem estva numa esplanada a beber um caixão..." -biére- cerveja, caixão. Será assim?
De Carlos Loures a 19 de Fevereiro de 2011
Sim, tem essas acepções - cerveja, esquife, caixão. A primeira acepção é cerveja e as outras quase não se usam. Talvez o professor tenha exagerado para os alunos compreenderem o cuidado com que o dicionário deve ser utilizado.
De Luis Moreira a 19 de Fevereiro de 2011
Pois, também me pareceu na altura, embora miúdo.Ele queria-nos dizer que a interpretação da frase é que é fundamental. E, dizia-nos que traduzir poesia é de uma dificuldade extrema.
De Josep Anton Vidal a 19 de Fevereiro de 2011
Sin menoscabo del cariño hacia los compañeros del gremio de traductores, del que formo parte, me permito contar tres anécdotas que, aunque parecen broma, son ciertas:
a) En un best-seller (que supongo se tradujo con las prisas de llegar al mercado al momento del lanzamiento), basado en una serie de crímenes relacionados con la obra de un famoso pintor, se describía una entrada de la protagonista con los cabellos rígidos. En la traducción se confundió "air" con "hair".
b) En una obra médica, al explicar una técnica diagnóstica consistente en el examen de una preparación microscópica fecal húmeda (Wet fecal mount), la traducción precipitada obligaba al analista a examinar un montón de heces húmedas.
c) Aún en el terreno de la medicina, ahora veterinaria, el veterinario debía proceder a la palpación rectal con el fin de observar si había respuesta dolorosa a la palpación. Una vez más, la traducció precipitada de la palabra "tenderness" (respuesta dolorosa a la palpación) produjo este resultado hilarante (que afortunadamente fue detectado a tiempo para que no llegar a la publicación) "El veterinario procederá a la palpación rectal hasta que la vaca muestre ternura."
De augusta clara a 19 de Fevereiro de 2011
Ahahahahaha ! Obrigada, Josep , por este momento de boa disposição.
De Luis Moreira a 19 de Fevereiro de 2011
Como nos anos 60 em que as "maisons" tinham "janelas" para a frente e "fenêtres" para trás.
De augusta clara a 19 de Fevereiro de 2011
Isso eram os nossos emigrantes em França. Nos anos 70 apanhei um tão giro no Sud-Express que oferecia jambon " a toda a gente e dizia que o comboio se ia arretar ".
De augusta clara a 19 de Fevereiro de 2011
E o sistema comeu-me as aspas nas traseiras deixou-mas só nas janelas da frente.

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