Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2011

Cartas da Abissínia - Jean-Arthur Rimbaud II

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

Boas e Más Memórias

 

 

 

 

Jean-Arthur Raimbaud  Cartas da Abissínia (continuação)

(trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares)

 

 

 

 

Harar, 15 de Janeiro de 1881

 

 

 

(...) Tenho muita necessidade de tudo quanto vos pedi, e suponho que os primeiros objectos já chegaram a Aden. Mas de Aden até aqui, ainda falta um mês. Vai-nos chegar uma enorme quantidade de mercadorias da Europa, e vamos ter muito trabalho. Em breve irei dar uma grande volta pelo deserto a fim de comprar camelos. Naturalmente, temos cavalos, armas e o resto. O país não é desagradável: presentemente o tempo é igual ao do mês de Maio em França.

 

 

 

Recebi as vossas duas cartas de Novembro; mas perdi-as logo a seguir. Porém, como tive tempo de as ler, recordo que vocês acusavam a recepção dos primeiros cem francos que vos enviei. Voltei a enviar-vos cem francos para o caso de vos ter ocasionado despesas. Este será o terceiro envio e pararei até nova ordem; aliás, quando receber resposta a esta carta, já estaremos em Abril. Não vos disse que estava contratado por três anos; o que não me impedirá de sair em glória e confiança, se porventura me fizerem sacanices. O meu venci­mento é de 300 francos por mês, fora toda a espécie de encargos, e um tanto por cento sobre os lucros.

 

 

Iremos ter na cidade um bispo católico, que provavelmente será o único católico da região. Aqui, estamos no país dos gallas.

 

Vamos mandar vir uma máquina fotográfica e então enviarei para aí vistas do país e das gentes. Também vamos receber material de preparador de história natural e mandar-vos-ei pássaros e animais que ainda não foram vistos na Europa. Já aqui tenho algumas curiosidades, esperando oportunidade para expedi-las.

Estou feliz por saber que pensam em mim e que as coisas vos correm bastante bem. Espero que tudo vos corra o melhor possível. Pelo meu lado, esforçar-me-ei por tornar o meu trabalho interessante e lucrativo. (...)

Harar, 15 de Fevereiro de 1881

 

 

 

(...) Não conto ficar aqui muito tempo; em breve saberei quando parto. Não encontrei o que imaginava; vivo de uma maneira muito desagradável e sem lucro. Logo que juntar 1500 a 2000 francos, partirei; e ficarei todo contente. Espero encontrar melhor um pouco mais longe. Escrevam-me a dar notícias sobre as obras do Panamá: irei, mal tenham começado. Doravante, até ficarei contente por sair daqui. Contraí uma doença1, em si pouco perigosa; mas o clima local é traiçoeiro para toda e qualquer doença. Uma ferida nunca sara. Um golpe de um milímetro num dedo supura durante meses e gangrena facilmente. Por outro lado, a administração egípcia não tem médicos nem medicamentos suficientes. O clima no verão é muito húmido; é mal-são; incomoda-me o mais possível, é demasiado frio para mim.

 

 

 

Quanto a livros, não me enviem mais desses manuais Roret.

 

 

 

Há quatro meses que encomendei vários objectos em Lyon, e não vou tê-los antes de dois meses.

 

 

 

Não se deve pensar que este país é totalmente selvagem. Temos um exército, artilharia e cavalaria, egípcio, e respectiva administração. É tudo parecido com o que existe na Europa; só que são uma data de cães e bandidos. Os indígenas são os gallas, todos camponeses e pastores: gente tranquila, quando não são atacados. O país é excelente, embora relativamente frio e húmido; mas a agricultura não está desenvolvida. O comércio consta princi­palmente de peles de animais, que são negociados enquanto vivos e que depois se esfolam; depois há o café, o marfim, o ouro; perfumes, essências, almíscar, etc. O mal é que se está à distância de 60 léguas do mar e que os transportes custam caro.

 

 

 

Fico feliz por saber que as vossas coisas vão o melhor possível. Não vos desejo uma reedição do inverno de

1879-80, de que me recordo suficiente­mente bem para evitar passar alguma vez por outro semelhante.

 

 

 

Se descobrirem um exemplar desirmanado do Bottin, Paris e Estrangeiro (mesmo que seja antigo) por poucos francos, enviem-mo num caixote: tenho particular necessidade dele.

 

 

 

Metam-me também meia libra de grãos de beterraba sacarífera num canto da encomenda.

 

Peçam - se ainda vos restar dinheiro - na Lacroix, o Dicionário de Enge­nharia Militar e Civil, preço 15 francos. Não tem muita pressa.

 

 

 

Garanto-vos que cuidarei dos livros.

 

O nosso material de fotografia e de preparação de história natural ainda não chegou, e penso que partirei antes de ele chegar.

 

 

 

Tenho uma imensidade de coisas a pedir; mas é preciso que me mandem o Bottin em primeiro lugar.

 

 

 

A propósito, como é que não encontraram o dicionário árabe? No entanto, deve estar aí em casa.

 

 

 

Digam ao Frédéric para procurar entre a papelada árabe um caderno intitulado: "Brincadeiras, jogos de palavras, etc." em árabe; deve lá estar também uma colecção de diálogos, de canções ou outra coisa qualquer, útil para aqueles que estão a aprender a língua. Caso haja uma obra em árabe, enviem-ma; mas tudo isto como embalagem, pois não vale os portes.

 

 

 

Vou mandar-vos uns vinte quilos de moka à minha custa, se não pagar direitos aduaneiros muito altos. (...)

 

 

 

Harar, 4 de Maio de 1881

 

 

 

(...) Cá por mim, conto em breve deixar esta cidade para ir negociar em terras desconhecidas. Há um grande lago, a alguns dias de distância, numa região de marfim: vou tentar chegar lá. Porém a terra deve ser hostil.

 

 

 

Vou comprar um cavalo e desandar. No caso de dar para o torto e de eu ficar por aqui, informo-vos de que possuo uma soma de sete vezes 150 rupias depositada na agência de Aden, a qual podereis reclamar caso vos pareça valer a pena. (...)

 

 

Harar, 25 de Maio de 1881

 

 

 

(...) Ai de mim! Não tenho apego nenhum à vida, e se vivo, é porque estou habituado a viver de fadigas; mas se for forçado a continuar a fatigar-me como até agora e a alimentar-me de mágoas tão veementes como absurdas nestes climas atrozes, temo abreviar a minha existência.

 

 

 

(...)

 

 

Enfim, possamos nós usufruir de alguns anos de verdadeiro sossego nesta vida; felizmente que é uma só e que isto é evidente, pois não podemos imaginar uma outra vida com tormentos maiores do que este! (...)

 

 

Harar, 2 de Julho de 1881

 

 

 

Acabo de regressar do interior onde comprei uma quantidade conside­rável de couros secos.

 

 

 

Presentemente estou com um pouco de febre. Volto a partir dentro de alguns dias para uma zona totalmente inexplorada pelos europeus; e, se conse­guir lançar-me decididamente ao caminho, será uma viagem de seis semanas, penosa e arriscada, mas que poderá ser lucrativa - sou o único responsável desta pequena expedição. Espero que tudo corra o menos mal possível. De qualquer forma, não fiquem em cuidado por minha causa. (...)

 

 

Harar, sexta-feira, 22 de Julho de1881

 

 

 

(...) Nunca vos esqueço, como poderia eu? e se as minhas cartas são muito breves é porque, constantemente em expedições, estou sempre pressionado com as horas de partida dos correios. Mas penso em vocês, não penso senão em vocês. E que quereis que vos conte do meu trabalho aqui, que já me repugna enormemente, e do país, que abomino, e por aí fora? Quando vos contarei eu as diligências que fiz com fadigas extraordinárias e que não me trouxeram nada a não ser a febre, que de há quinze dias a esta parte me põe no estado em que eu estava em Roche há dois anos? Mas, que quereis? agora estou habituado a tudo, não tenho medo de nada. (...)

 

 

 

Harar, 2 de Setembro de 1881

 

 

 

(...) Continuo a não gostar nada desta região de África. O clima é embirrento e húmido; o trabalho que faço é absurdo e embrutecedor, e no geral as condições de vida são também absurdas. Além disso, tive altercações desagradáveis com a direcção e os demais, e estou quase decidido a mudar de ares, em breve. Tentarei empreender qualquer coisa por conta própria aqui no país; e, se isso não resultar (o que saberei rapidamente), partirei bem depressa para outro trabalho, assim o espero, mais inteligente e sob melhor céu. Até poderia acontecer que nesse caso ficasse associado à casa - noutro local. (...)

 

 

 

Aden, 18 de Janeiro de 1882

 

(...) Saí de Harar e vim para Aden, onde espero romper o compromisso com a casa. Encontrarei outra coisa facilmente.

 

 

Quanto ao assunto do serviço militar, encontrareis junto uma carta do cônsul dirigida à minha pessoa, mostrando o que eu fiz e que documentos se encontram no ministério. Mostrem esta carta às autoridades militares, que isso as tranquilizará. Se for possível enviarem-me um duplicado da caderneta que perdi, agradeço-vos que o façam em breve, pois o cônsul está a solicitar-ma. Enfim, com o que aí têm e com o que enviei, creio que o assunto se resolverá.

 

 

Anexo uma carta para o Delahaye; tomem conhecimento dela. Se ele ficar em Paris, isso vem ao meu encontro: tenho necessidade de mandar comprar alguns instrumentos de precisão. É que vou preparar uma obra para a Socie­dade de Geografia, com mapas e gravuras, sobre o Harar e as regiões gallas. Neste momento vou mandar vir de Lyon uma máquina fotográfica; levo-a para o Harar e tirarei vistas destas regiões desconhecidas. É um bom negócio.

 

 

Também preciso de instrumentos para fazer os levantamentos topográficos e medir as latitudes. Quando este trabalho estiver terminado e for recebido pela Sociedade de Geografia, talvez possa obter fundos para outras viagens. A coisa será fácil. (...)

 

 

Aden, 15 de Abril de 1882

 

 

 

Querida Mãe,

 

 

 

(...) Quanto aos meus proveitos, a que te referes, são muito pequenos e não me preocupo nada com eles. Quem poderia prejudicar-me, a mim que não disponho senão da minha pessoa? Um capitalista da minha espécie não tem nada a temer dessas especulações, nem dessas nem doutras. (...)

 

 

Aden, 10 de Maio de 1882

 

(...) Certifiquem-se da minha conta: a minha situação não tem nada de extraordinário. Continuo empregado na mesma casa e esfalfo-me como um burro num país pelo qual sinto uma aversão invencível. Faço tudo para poder sair daqui e arranjar um emprego mais recreativo. Espero bem que esta vida termine antes de eu ter tempo de ficar completamente idiota. Além do mais, gasto muito em Aden, e isso faz com que, ainda por cima, me canse muito mais do que noutro lugar. (...)

 

 

Aden, 10 de Julho de 1882

 

 

 

(...) Espero bem ver chegar o meu sossego antes da morte. Aliás, presentemente estou habituado a toda a espécie de tormentos e, se me lastimo, é uma espécie de modo de cantar. (...)

 

 

 

(...) Deveis ter recebido uma carta minha onde vos pedia que me mandassem um mapa da Abissínia e do Harar, o mapa do Instituto Geográfico de Péterman. Espero que o tenham encontrado e que virei a recebê-lo. Sobretudo, não me enviem outro mapa que não seja esse.

 

O meu trabalho aqui é sempre o mesmo; não sei se mudarei ou se me deixam no mesmo lugar.

 

 

As desordens no Egipto têm como consequência dificultar todos os negócios nestas bandas; por agora, deixo-me ficar muito quietinho no meu canto, pois não encontrarei nada noutro sítio. Mais vale que a ocupação inglesa seja permanente no Egipto. E se os ingleses descerem até ao Harar, também passaremos bons tempos por aqui.

 

 

Enfim, tenhamos esperança no futuro.

 

 

Aden, 10 de Setembro de 1882

 

 

 

(...) Nada de novo na minha situação, que é sempre a mesma. Já só me restam treze meses na casa; não sei se os terminarei. O actual agente de Aden vai-se embora dentro de seis meses; é possível que eu o substitua. Os vencimentos seriam de uma dezena de milhares de francos por ano. Sempre é melhor do que ser empregado; e, a ser assim, ficaria aqui mais uns bons cinco a seis anos.

 

 

 

Enfim, veremos para que lado pendem os pratos da balança.

 

 

Aden, 28 de Setembro de 1882

 

 

 

Continuo no mesmo sítio; mas conto partir no fim do ano para o continente africano, não já para Harar, mas para Choa (Abissínia).

 

 

 

Acabo de escrever ao antigo agente da casa em Aden, o senhor coronel Dubar, em Lyon, para que mande enviar-me uma aparelhagem fotográfica completa, com vista a levá-la para Choa, onde é desconhecida e onde poderei fazer uma pequena fortuna em pouco tempo. (...)

 

 

Aden, 16 de Novembro de 1882

 

 

 

(...) Quando voltar a partir para África, com a minha bagagem fotográfica, enviar-vos-ei coisas interessantes. Aqui em Aden não há nada, nem uma única folha de papel (a menos que a gente a traga), e é um lugar onde só se fica por necessidade. (...)

 

 

 

 

Aden, 8 de Dezembro de 1882

 

 

 

Querida Mamã,

 

 

 

(...) Dizes que me roubam. Sei muito bem quanto custa só a máquina: várias centenas de francos. Mas há ainda os produtos químicos, numerosos e caros, entre os quais se contam compostos de ouro e prata que custam até 250 francos o quilo; há as chapas, os cartões, as tinas, os frascos, as embalagens muito caras que fazem crescer a verba. Pedi todos os ingredientes para uma campanha de dois anos. Cá por mim, penso que mos fornecem a bom preço. Receio apenas que as coisas se partam pelo caminho, no mar. Se tudo chegar intacto, obterei um bom lucro, e enviar-vos-ei coisas curiosas.

 

 

Em vez de te zangares, deves regozijar-te comigo. Sei o preço do dinheiro; e, se arrisco alguma coisa, é com conhecimento de causa.

 

 

Agradecia-vos que acrescentassem o que possam pedir a mais pelos portes e embalagem.

 

 

De meu dispõem de 2500 francos, desde há dois anos. Fiquem com as terras que compraram com esse dinheiro por conta das verbas que vão desembolsar comigo. O negócio é bem simples, não há confusão.

 

 

É acima de tudo doloroso que termines a carta dizendo que vocês não se metem mais nos meus negócios. Não é uma boa maneira de ajudar um homem a milhares de léguas de distância de casa, viajando no meio de povos selvagens e não tendo um único correspondente no seu país! Quero esperar que alterem essa intenção tão pouco caridosa. Se até à família já não me posso dirigir para encomendar coisas, c'os diabos, a quem me poderei então dirigir?

 

 

Recentemente enviei-vos uma lista de livros a serem expedidos para aqui. Por favor, não atirem a minha encomenda para o lixo! Vou voltar a partir para o continente africano, por vários anos; e, sem esses livros, falta-me uma quantidade de informações que me são indispensáveis. Ficaria como um cego; a falta dessas coisas prejudicar-me-ia muito. Portanto, mandem prontamente todas essas obras, sem que falhe uma só; metam-nas numa caixa com a indicação "livros" e enviem-ma para aqui, pagando os portes, por intermédio do Sr. Dubar. (...)

 

___________________

1 Os biógrafos não parecem ter dúvidas de que fosse a sífilis; temos aqui a primeira referência à doença, da qual, julgam eles, Rimbaud terá morrido. Será prudente considerar que tal interpretação é de facto duvidosa.

 

(continua)

(in Jean-Arthur Rimbaud, Cartas da Abissínia seguido de Philippe Soupault, Mar Vermelho, & etc)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 14:00

editado por Luis Moreira às 15:42
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