Quinta-feira, 17 de Fevereiro de 2011

Pena de Morte - Eva Cruz

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

Eva Cruz  Pena de Morte

 

 

(Ilustração de Adão Cruz)

 

Era uma tarde do começo de Primavera.

 

Sentada no banco do meu jardim num deleite bucólico, a contemplar as flores de pão e queijo amarelas, espreitando por entre os fetos de pé preto, vi uma melra com uma palhinha no bico, disparar de um galho meio despido e entrar que nem uma flecha num arbusto, rente à hera do velho muro. Reconheci a fêmea pelo bico e penas acastanhadas, salpicadas de cinzento. Ia ali nascer um ninho e dentro a Primavera.

 

Dias seguidos fui observando a melra a construir a sua casa, com palhas, pequeninos gravetos e penas levadas no bico. De vez em quando o melro, no seu fato preto de bico amarelo, ajudava, e percebi que a emancipação já tinha chegado às aves, ou então sempre assim fora e mostravam-se mais evoluídas do que os humanos.

 

Ninho feito, logo foram postos quatro ovinhos, claros, de manchas avermelhadas, não saindo a fêmea de cima deles, enamorada no seu choco, durante cerca de duas semanas. Quando a via sair, espreitava de longe pelo buraquinho, não fosse ela enjeitar, e não tardei em ver quatro cabecinhas nuas, de tenro bico espetado no ar. Em breve se haviam de vestir e voar pelos céus da Primavera.

 

Um gato malhado de branco e preto, pequenito ainda, o resto de uma ninhada da gata amarela, espreitava, num galho seco de uma vide morta, a pequenina presa, e de um salto acrobático enfiou-se no buraco, agarrando o ninho por entre os bigodes. Foi tal a minha fúria que aos gritos o espantei, e na fuga deixou cair o ninho com os passarinhos despidos e esfacelados. A pobre da mãe melra chegou e chorou com pios desgarrados a sua desgraça. O melro voltejava por ali descontrolado.

 

Na calçada, ouvi o barulho…do tractor que matou o gato com as rodas traseiras. Com  fúria disse para comigo: bem feito, foi como esmola num pobre! A gata amarela chegou, cheirou o corpo do gatito inerte e em cima do muro chorou o seu cântico fúnebre. Apoderou-se de mim um sentimento de pena e quase esqueci os passaritos nus.

 

Recordei então um texto de Camus, Reflexões sobre a guilhotina.

 

Numa aldeia deu-se um crime hediondo. Um assassino tinha chacinado uma família de lavradores incluindo os filhos pequenitos. O caso revoltou a população que considerava a decapitação uma pena leve de mais para tal monstro. No dia da execução, um aldeão, na sua revolta, quis a todo o custo presenciar a morte do criminoso. Só assim poderia saciar a sua sede de vingança. Levantou-se de madrugada, pois tinha à frente um longo percurso a pé, uma vez que o lugar da execução era na cidade. Viu chegar o condenado que tremendo de medo, mal se erguia nas pernas. O rosto congestionado implorava pela vida.

O aldeão, depois de ver a cabeça rolar pelo chão, voltou para casa, recusou-se a falar do caso e vomitou. Dali em diante apagou-se nele a imagem do crime hediondo. Na sua mente ficara apenas e para sempre o rosto do condenado.

 

Quem dera que na próxima Primavera, a melra volte ao velho muro de hera para cantar um novo hino à vida.

publicado por Augusta Clara às 14:00
link | favorito
1 comentário:
De augusta clara a 17 de Fevereiro de 2011
Os teus textos fazem-me sempre sentir a nostalgia de não ter nascido ou, pelo menos vivido, no campo. Têm sempre um aroma indefinível.

Comentar post

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links