Esta história começa em 1981. Até ali eu não ouvira falar de Rui Veloso mas o meu irmão comprou Ar de rock. Que, durante meses, fui descobrindo. Seduziram-me os ambientes, as ficções, as palavras de Carlos Tê – e, claro, a maneira como Rui Veloso oferece tudo isto. A música. A voz.
Muitos anos e aventuras mais tarde, comecei a dar aulas em França. Os alunos eram quase todos filhos de emigrantes porém, de Portugal, a maioria conhecera apenas a aldeia onde os pais haviam nascido. Busquei o que podia dar-lhes a ouvir. Experimentei José Afonso; riram-se da voz fininha. Experimentei Sérgio Godinho; também não gostaram.
Sublinhei um dia que os índios, os indianos, os gregos da antiguidade, cada povo explica, à sua maneira, o aparecimento do primeiro ser humano, pedi-lhes que procurassem o nosso mito da criação e, na aula seguinte, mo contassem. Embora tivessem frequentado a catequese, nunca haviam lido o Antigo Testamento, por conseguinte lançaram, de maneira confusa, Adão, Eva e a maçã. Prevendo isto eu levara as primeiras páginas do Génesis e, a partir daí, estabelecemos as bases: um Criador; a obra à imagem do Criador: primeiro o homem, depois a mulher, criada para o acompanhar; o espaço – o Jardim – onde podiam comer o fruto de todas as árvores, excepto a do conhecimento do bem e do mal; o elemento perturbador: a serpente; a transgressão da mulher; o castigo: expulsão do Jardim; as consequências: o conhecimento e portanto o pecado; a sujeição ao tempo, logo, à vida e à morte, ao sexo e ao amor; a condenação do homem ao trabalho (Hás-de comer o pão com o suor do rosto) e da mulher tanto à maternidade (Terás os filhos com dor) como ao domínio masculino: (Buscarás com paixão a quem ficarás sujeita). Depois disto ouvimos A origem do mal de Carlos Tê e Rui Veloso.
Encontrei Adão e Eva no Palácio de Cristal
Ainda o mundo era puro e sem pecado original
Foram ver o Marco Paulo que já andava a cantar
Depois foram de mão dada mas nada de namorar.
Fizemos um quadro com as constantes e as inovações desta versão do mito. Debatemos o assunto. E tirámos conclusões. Grande sucesso. Grande surpresa. Então aquela música era portuguesa?!
Dali em diante não me privei de levar Carlos Tê e Rui Veloso para as aulas. Mas cumpria dosear com habilidade e escolher o momento propício. São Miguel ( Auto da Pimenta, 1991) serviu de introdução aos Descobrimentos.
A oeste de Finisterra ficam as ilhas perdidas
Disse-me um corso galego que um dia as viu e perdeu
As velhas cartografias também o dizem assim
Como ter fortuna de as achar no mar oceano sem fim?
A primeira estrofe de Carlos Tê sublinha a falta de referências fiáveis, por serem vagas tanto as velhas cartografias quanto as informações de navegadores: o corso galego, se não fabulava, vira e perdera as ilhas por falta de apetrechos científicos. E, por outro lado, o mar oceano sem fim representava uma pavorosa imensidão. Para a descoberta restava portanto a possibilidade ínfima, à qual o homem do século XV chamaria milagre; no entanto o navegador – talvez Diogo de Silves – não se limita a rezar e, empurrado pela curiosidade, sai da rota habitual. Por isso descobre as ilhas.
Dois meses mais tarde, depois de lermos Mar português de Fernando Pessoa, alguns versos de Luís de Camões, vários capítulos de Fernão Mendes Pinto, de ouvirmos uma ou duas canções de Fausto (Por este rio acima), voltámos a Carlos Tê e Rui Veloso com a canção Lançado (Auto da Pimenta).
Cometi crime de amor, à morte fui condenado
Mas antes do cadafalso a um capitão fui chamado
Que partia para a Guiné e me prometeu perdão
Se fosse numa galé e aceitasse a missão
De à sorte ser lançado na má terra do gentio
Sozinho e abandonado durante meses a fio.
No ano seguinte estudámos A ilha (Guardador de Margens, 1983), poema construído através de uma metáfora recorrente: o espaço urbano onde o navegador circula é o mar no qual descobre uma ilha... uma pequena maravilha. Isto é: uma rapariga tão solitária como ele.
Fiz-me ao mar com lua cheia
A esse mar de ruas e cafés
Com vagas de olhos a rolar
Que não me viam no convés
Tão cegas no seu vogar.
Este poema mostra que os Descobrimentos perduram no imaginário português contemporâneo. Incluí-o uma ou outra vez na lista de textos que os alunos deviam apresentar na prova oral do último ano do liceu. E muitas alunas obtiveram com ele notas excepcionais. Algumas vezes, quando me escrevem, ainda exclamam: ah, professora, o Rui Veloso!
Não há estrelas no céu (Mingos e Samurais, 1990) era outro grande sucesso. Tanto rapazes como raparigas achavam na letra e na voz a expressão do seu mal-estar de adolescentes, levavam o texto para a oral e obtinham excelentes notas. E Porto Sentido (Rui Veloso, 1986) também não obtinha menos êxito em aulas e exames.
Depois eu mudei de liceu. E tudo mudou – excepto a recepção do Rui Veloso. Até ali eu escolhera os textos por razões de linguística, de estética e de cultura portuguesa. Porém, na minha nova profissão, com alunos a lançarem-me cadeiras à cabeça, comecei também a proteger-me com Carlos Tê. e Rui Veloso. Trazia sempre na pasta vários cedês (que aliás foram, mais de uma vez, roubados), tal como duas ou três letras... E, se outra actividade não era possível, estudávamos Carlos Tê. e Rui Veloso. Tentávamos aprender (ou rever) a expressão no passado? Punha no aparelho Paixão (Mingos e Samurais) ou Todo o Tempo do Mundo (Avenidas, 1998). Eles ouviam, sublinhavam, com cores distintas, nas letras, os pretéritos perfeitos e imperfeitos. E traduziam o texto. E cantavam em coro. No mínimo, enquanto ouviam e cantavam: sossegavam. Eu caía na cadeira. E o meu ritmo cardíaco acalmava-se. (Que idade tem o Rui Veloso? Inquiriam alunas minhas gentis, apaixonadas por aquela voz.)
Devo a Carlos Tê. e Rui Veloso o prodígio de continuar viva.
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