
À volta da mesa, por Henri Fantin-Latour, 1872, Rimbaud é o segundo à esquerda, tendo ao seu lado direito Paul Verlaine.
Transcendência poética e poder visionário obtida através do “longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos.”, dizia numa carta Rimbaud, descrevendo o seu projecto . Com 16 anos escreveu uma obra que século e meio depois ainda surpreende pela sua audácia e pelo fulgor das imagens. Ainda hoje pode ser considerada uma poesia ousada. Mas não é da poesia que quero falar – é do mistério que envolve este adolescente genial que se transforma num adulto que em nada corresponde ao que o enfant terrible prometia vir a ser e a fazer. Vejamos em muito breves traços como foi feito esse percurso de vinte anos.
A sua curta mas fulgurante obra, foi criada após um não longo, mas intenso desregramento dos sentidos – álcool, drogas, sexo, tudo isso em doses desmedidas, terá contribuído para conferir ao adolescente uma inusitada experiência de vida. Começou por uma atribulada ligação amorosa com Paul Verlaine, que deixou a mulher e um filho para ir com o seu jovem amante mergulhar nas emoções da Comuna de Paris, após o que foram ambos para Londres. A relação desembocou numa situação conflituosa, chegando ao ponto de Verlaine o tentar matar, desfechando-lhe dois tiros, os quais, no entanto, apenas feriram Rimbaud superficialmente. Rimbaud voltou a casa de sua mãe, em Charleville, nas Ardenas, e completou Une saison en enfer. A tradução óbvia seria “Uma estação no Inferno” ou “Uma Temporada no inferno”. Abro um parêntesis para referir que a primeira tradução portuguesa foi a de Mário Cesariny de Vasconcelos, em 1960, com o título de “Uma Época no Inferno”. Depois, Cesariny lançou nova edição com o título de ‘Iluminações – Uma Cerveja no Inferno”. Porquê “Uma Cerveja”? Cesariny tinha a convicção de que “Saison” era uma marca de cerveja que se vendia nas Ardenas – algo como “Uma Sagres no Inferno”. A obra parece traduzir os alucinantes meses vividos com Paul Verlaine. Poetas malditos, foi como Verlaine se descreveu a si e a Rimbaud.
Jean-Arthur deambulou pela Europa, cobrindo grandes extensões a pé. Após estas viagens em que ainda se encontrou em Estugarda com Verlaine (1875), escritas as suas Illuminations, decidiu deixar de escrever. Há várias interpretações sobre esta decisão – há mesmo quem pense que Rimbaud tinha como objectivo enriquecer tão depressa quanto possível para poder voltar a escrever sem se preocupar com a subsistência. É aqui que se situa a encruzilhada. Em breves linhas, vamos ver no que resultou dessa opção.
Em 1876, com 22 anos, alistou-se como voluntário no Exército Colonial Holandês indo para Java, na actual Indonésia. Desertou pouco depois, regressando a França clandestinamente num barco de carga. Em 1878 vamos encontrá-lo em Lanarca, na ilha de Chipre onde trabalhou como capataz numa pedreira. Adoeceu, contraindo uma febre tifóide, e voltou ao seu país. Em 1880, vemo-lo chegar a Aden, no actual Iémen, onde obteve um lugar de responsável pelo escritório da companhia Pierre Bardey. Em 1884, com 30 anos, demite-se da Bardey e torna-se mercador por conta própria em Harare, na Abissínia (Etiópia). Embora negoceie outras mercadorias, o fulcro do seu negócio é o tráfico de armas.Tudo parece correr bem quando um cancro num joelho o obriga a voltar a França onde em Marselha lhe amputam a perna direita. Ainda volta a África, mas o estado de saúde depressa se degrada, forçando-o a um novo regresso a França. Após meses de sofrimento, em 1891, apenas com 37 anos, morre.
Jean-Arthur Rimbaud - uma poesia magnífica, profética, incendiária - o adolescente que a escreveu, deu lugar a um traficante de armas. O Ladrão de Fogo, o Príncipe Poeta, como se auto-designou, transformou-se num homem que nada tinha a ver com o jovem que passou uma temporada no Inferno ou, segundo Cesariny, ali desceu, apenas para beber uma cerveja.
Havemos de voltar a Rimbaud.

Foto tirada no período em que viveu em Aden, na Abissínia. Rimbaud é o segundo a contar da direita (sentado).
Vidas atormentadas e vividas quase em delírio são muito frequentes em grandes poetas. O mundo e a vida do dia a dia não lhes basta.
La figura de de Rimbaud, com la de tants d'altres intel·lectuals i artistes, ens sedueix alhora per l'excel·lència de la seva obra i per l'atracció morbosa que exerceix sobre nosaltres la seva vida malaguanyada, tràgica, pertorbada... En un joc de miralls que és, d'alguna manera, una mica pervers, aquests dos extrems ens enlluernen per la capacitat que tenen de fer-nos evidents les pròpies contradiccions. Amans de les excelcituds de l'art, ens identifiquem -i ens redimim així- amb allò que hi trobem d'excel·lent, de subil; però, contradictoris, incoherents, fins i tots miserables, mirem, tot reprimint un estremiment profund, la tràgica trajectòria del poeta, de l'artista. Hauríem volgut que la bellesa d'un pensament, d'una partitura, d'un poema, d'un quadre o d'una escultura fossin suficients per vertebrar de manera coherent tota una existència. La de l'artista i la nostra. I ens agrada imaginar l'artista -incoherent, turmentat, tràgicament endut a situacions extremes i miserables- es redimeix amb la bellesa de la seva obra. Perquè de la mateixa manera ens sentim redimits amb l'apreci de la bellesa i de l'art, encara que sigui obra dels altres. Pero no és pas així. No podem superar ni remuntar, amb la mística de l'art -o de la filosofia, o de la política, o de la religió- la nostra condició humana, els seus límits, les seves fluctuacions, la seva incoherència... Baudelaire, un altre dels poetes "maudits" ho sabia molt bé, i és per això que en poema adreçat "au lecteur" amb què encapçala les seves "Fleurs du mal", ens desemmascara i no ens deixa refugiar-nos en la comoditat de l'engany: "Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat, / - Hypocrite lecteur - mon semblable, - mon frère!". Les nostres arrels culturals, les més profundes, ens obliguen a cercar el sentit últim de tot, i amb ell, la coherència extrema. Formem part d'una cultura salvífica, redemptorista, en la qual tot té un sentit que s'explica com a progrés. Avancem cap a la culminació... I les nostres misèries es poden redimir: amb una idea, amb un sentiment, amb una acció política, amb un sacrifici, amb un acte de caritat, fins i tot amb un cop de sort... I ens obstinem en aquesta idea, perquè ens hi va la vida. Des d'aquest convenciment, pensem que quan es trenca la coherència és que s'ha produït un fet dissortat, una "anomalia"... Que hi ha intervingut, d'una manera o una altra, el "mal"... Aleshores, l'art no és el que havia de ser; el resultat polític, no és el que el nostre gest mereixia, la vida s'ha torçat... La redempció no s'ha consumat.
Però, en el fons, és que, de la vida de l'home, com de l'art, com de les idees, com de la realitat, en sabem tan poques coses que no ens basten per viure. I per això les omplim amb somnis inventats, amb sentiments sublims que ens redimeixen... Però, els poetes, els grans poetes, no permeten que ens enganyem, i per això l'art, en el seu estat més excel·lent, no està mai en la complaença del autor o del lector, sinó, sobretot, en el seu poder revulsiu, de desemmascarament i de denúncia, en la seva capacitat d'arrencar-nos l'antifaç i posar-nos cara a cara amb la nostra fragilitat.
"Entre mim e o que sou há a escuridão" (F. Pessoa)
De augusta clara a 13 de Fevereiro de 2011
Josep , entendi o sentido que me agradou muito, mas gostava tanto de perceber tudo o que está escrito. Não podemos ter uma tradução para castelhano, por favor?
Como sempre, muito bom, caro Josep.
De augusta clara a 13 de Fevereiro de 2011
Josep , entendi o sentido que me agradou muito, mas gostava tanto de perceber tudo o que está escrito. Não podemos ter a tradução para castelhano, por favor?
Gustosament, Augusta:
La figura de de Rimbaud, como la de tantos otros intelectuales y artistas, nos seduce a la vez por la excelencia de su obra y por la atracción morbosa que ejerce sobre nosotros su vida malograda, trágica, perturbada ... En un juego de espejos que es, de alguna manera, un poco perverso, ambos aspectos nos deslumbran por la capacidad que tienen de poner en evidencia nuestras propias contradicciones. Amantes de la excelsitud del arte, nos identificamos -y con esta identificación nos redimimos- con lo que en él hallamos de de excelente, de sublime; pero, contradictorios, incoherentes e incluso miserables, miramos -reprimiendo un profundo temblor- la trágica trayectoria del poeta, del artista. Hubiéramos querido que la belleza de un pensamiento, de una partitura, de un poema, de un cuadro o de una escultura fueran suficientes para vertebrar de manera coherente toda una existencia. La del artista y la nuestra. Y nos gusta imaginar que el artista -incoherente, atormentado, trágicamente llevado a situaciones extremas y miserables- se redime con la belleza de su obra. Porque al mismo tiemplo y de igual manera nos sentiríamos redimidos nosotros con el acto sublimador de apreciar la belleza y el arte, aunque sean obra de otro.
Pero no ocurre así. No podemos superar ni remontar, con la mística del arte -o de la filosofía, o de la política, o de la religión- nuestra condición humana, sus límites, sus fluctuaciones, su incoherencia ... Baudelaire, otro de los poetas "maudits" lo sabía muy bien, y es por ello que en el poema dirigido "Au lecteur" con el que encabeza sus "Fleurs du mal", nos arranca la máscara y no deja que nos refugiemos en la comodidad del engaño: "Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat, / - Hypocrite lecteur - mon semblable, - mon frère!"
Nuestras raíces culturales, las más profundas, nos obligan a buscar el sentido último de todo, y con ese sentido, la coherencia extrema. Formamos parte de una cultura salvífica, redentorista, en la que todo ha de tener una dirección y un sentido que explicamos en última instancia como progreso. Avanzamos hacia una culminación ... Y eso significa, en nuestro imaginario ideológico, que nuestras miserias pueden redimirse: con una idea, con un sentimiento, con una acción política, con un sacrificio, con un acto de caridad, incluso con un golpe de suerte ... Y nos empeñamos en esta idea, porque en ello nos va la vida, el sentimiento profundo de que sólo así vale la pena. Desde esta convicción, creemos que si se rompe la coherencia última es que se ha producido un accidente, un hecho desgraciado, una "anomalía" ... Que ha intervenido, de una manera u otra, el "mal" ... Y entonces sentimos que el arte no es lo que tenía que ser, que el resultado político no es lo que nuestro sacrificio merecía, que la vida se ha torcido se ha desviado de su rumbo ... La redención no se ha consumado.
Pero, en el fondo, es que, de la vida humana -como del arte, como de las ideas, como de la realidad- sabemos tan poco que lo que sabemos no nos basta para vivir. Y por eso llenamos nuestra existencia con sueños inventados, con sentimientos sublimes que nos redimen ... Pero, los poetas, los grandes poetas, no caen en la trampa y, ya sea con su obra o con su vida, no permiten que nos engañemos. Por eso el arte, en su estado más excelente, no suele estar nunca en la complacencia del autor o del lector, sino, sobre todo, en su poder revulsivo, de desenmascaramiento y de denuncia, en su capacidad de arrancarnos el antifaz y ponernos cara a cara con nuestra fragilidad.
"Entre mim e o que sou há a escuridão" (F. Pessoa)
De augusta clara a 13 de Fevereiro de 2011
Muito obrigada, Josep , pela sua generosa amabilidade em fazer-me chegar a tradução tão rapidamente. Na verdade, tinha percebido o coração da mensagem mas faltava o resto do corpo para apreciar devidamente tão bela e inteligente reflexão.
De Paulo Rato a 14 de Fevereiro de 2011
Mais uma vez o Josep analisou, com a sua tão peculiar lucidez e capacidade de escrita, as confusões e ilusões que muitos teimam em estabelecer entre Arte e Vida, como se o artista não pertencesse a esta nossa espécie humana, em que cada gesto ou cada rumo se estabelece em função de inesperadas e, as mais das vezes, inexplicáveis conjugações de milhões de variáveis contidas no seu herdado código genético, multiplicadas por mais uns milhões de possibilidades circunstanciais. Só as convenções socialmente estabelecidas ao longo de milénios, quase sempre infestadas de hipocrisias e artificiais distinções de classe, formam a nuvem que esconde esta realidade tão simples.
Que mais posso acrescentar senão, mais uma vez, um "Obrigado, Josep"?
Atenção:
Recentemente, foi confirmado que não é Rimbaud quem aparece nesta famosa fotografia, tendo sido identificado o verdadeiro personagem, bem como esclarecido que, na altura em que foi tirada, era impossível que Rimbaud estivesse em Aden, tudo isto objectivamente bem documentado.
Ficámos, ao que parece, sem qualquer retrato do jovem "cometa poético" quando homem-cão...
No que se refere à fotografia, peço ao Paulo Rato que especifique o significa «recentemente» - uma semana, um mês...? A informação. colhi-a há meses atrás, Abril, Maio de 2010, no arquivo do Le Figaro. Nessa altura, a descoberta desta fotografia era coisa muito recente. Se, entretanto, se descobriu que a identificação não era correcta, lamento ter dado uma informação errada
De Paulo Rato a 14 de Fevereiro de 2011
Carlos,
"Recentemente", neste caso, quer dizer mesmo "muito recente". Li a notícia no "Público" (não sei se no corpo do jornal, se nalgum dos seus suplementos), creio que há cerca de uma semana, o máximo duas... Como, cá por casa, os jornais vagueiam por lugares mais ou menos incertos, à espera de deles serem retirados alguns recortes, não lhe encontrei rasto, numa rápida busca.
Mas a conclusão e seus fundamentos pareceram-me bastante seguros. Além do mais, o "erro" tem prevalecido tanto tempo que não irá desvanecer-se rapidamente. Seremos dos primeiros a dar conta do que é fruto de uma investigação séria e não de um "palpite". De qualquer modo, podes encontrar o artigo aqui: "http://www.publico.pt/Cultura/a-foto-de-rimbaud-afinal-nao-era-de-rimbaud_1479246", embora a data não me pareça corresponder à da edição impressa (mas não deve andar muito longe). Ou procurar, no Google, por "rimbaud+foto+aden".
Um abraço
De Paulo Rato a 14 de Fevereiro de 2011
Carlos, esqueci-me de dizer que não tens de "lamentar" nada. Quantas informações, mesmo em ciências exactas, foram certezas durante imenso tempo, até serem descobertos novos elementos que as punham em causa? Hão-de ser muuuitos milhares...
A minha chamada de atenção foi apenas isso: dar conta de uma informação "muito recente!", que eu tinha e tu (e quantos mais?) não. Quantas vezes não vira eu já essa fotografia, sem pôr em dúvida a veracidade da identificação do poeta!
Também tu não tinhas, na altura, nenhuma razão para duvidares do que era dado como certo desde 1910!
A menos que andes a estudar p'ra druída e tenhas pensado: "eu bem sabia que não devia ter faltado àquela aula sobre a erva da identificação fotográfica"...
Abraço
De Paulo Rato a 14 de Fevereiro de 2011
E cá volto outra vez! Esquece "1910"! Como compro uma boa quantidade de revistas francesas, especialmente de cultura, devo ter misturado as vezes (provavelmente bastantes) que vi "esta" foto - na altura da descoberta - com aquelas em que vi as tais outras em que Rimbaud é identificado, mas a nitidez é bem menor. Enfim, mais uma confirmação da elasticidade do tempo (pelo menos, na minha cabeça)... Mas as observações sobre "lamentos" injustificados mantêm-se.
Abraço
A tua observação foi útil, pois levou-me a fazer uma pequena investigação. O que lamentava (e lamento) é dar informações erradas por incúria. E foi o caso. Tinha lido no Le Figaro a notícia da descoberta da foto, vi-a depois confirmada no El País. Hoje o nosso Josep Vidal enviou-me uma achega importante com o texto da controvérsia que houve em França em redor da identificação do rosto de Rimbaud por peritos. Em suma, quis ilustrar um artigo muito simples com duas imagens - uma da adolescência, quando ele queria «mudar a vida» e outra da maturidade, quando já só queria «governar a sua vida». Nunca pensei que a foto fosse duvidosa. Mas os que dizem que não pode ser Rimbaud, também podem não ter razão - enfim, tenho material para um post e não farei cimo tu que gastas as munições em comentários - vou mesmo escrever um post . Abraço.
De Paulo Rato a 15 de Fevereiro de 2011
Ah! Ah! Munições isto? Onde é a guerra? Ond'onde?! Agarrem-me, queuvoumaeles! Vivásmunições! Pum!
Djen'ral Paul Mouse, Cabo (de guerra...), Sargento Lateiro d'Avião, Almirante do Jamor (sector Mont'Abraão), condecorado com tudo, menos com cruzes (grandezópiquenas).
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