Há 140 anos atrás, a Europa vivia tempos particularmente difíceis. A guerra franco-prussiana terminara, com uma esmagadora e humilhante derrota francesa. Mais bem preparado, o exército prussiano, deflagrada o conflito em 19 de Julho de 1870, infligiu sucessivas derrotas aos franceses, aprisionou o imperador Napoleão III em Sedan, e em breve cercava Paris. Foi proclamada novamente a República na capital francesa, tomando posse um Governo Provisório de Defesa Nacional presidido por Louis Adolphe Thiers. Para agravar as coisas, na perspectiva dos franceses, era concluído, em Novembro de 1870, o processo de unificação de 25 estados germânicos, em Novembro de 1870, em 18 de Janeiro de 1871, era proclamado o Império Alemão. Nada disto seria de estranhar se Guilherme I, o soberano da Alemanha nascente, não tivesse sido coroado imperador do II Reich na sala dos espelhos do Palácio de Versalhes. Foi uma humilhação excessiva a que os franceses foram submetidos.
Contra a vontade popular, o Governo Provisório aceitou a capitulação de França, desarmou o exército e entregou o armamento. Só a Guarda Nacional formado em maioria por trabalhadores e pequeno burgueses, se manteve operacional. Para atenuar o vexame a que a França estava a ser submetida, a Guarda Nacional assaltou a prefeitura e expulsou os membros da assembleia-fantoche que se ia instalar em Versalhes.
A administração pública de Paris passou para as mãos do Comité Central da Guarda Nacional que manteria conversações com Versalhes até que, 18 de Março de 1871, Thiers mandou desarmar a Guarda numa operação-relâmpago durante a madrugada. A indignação dos franceses, perante os actos humilhantes a que os vencedores alemães e os seus aliados franceses os submetiam, atingiu o auge com esta nova afronta – o povo de Paris ergueu barricadas e alimentou a utopia de criar uma república socialista. Durante cerca de cinco meses a utopia aguentou-se e várias medidas foram tomadas: o alistamento obrigatório foi abolido, a Guarda Nacional passou a ser a única força militar permitida em Paris; todos os cidadãos válidos faziam parte da guarda nacional; as ferramentas penhoradas foram devolvidas aos operários durante o cerco à Comuna. O governo revolucionário foi formado por uma federação de representantes de bairro. Uma das suas primeiras proclamações foi a "abolição do sistema da escravidão do salário de uma vez por todas". O governo oficial, que ainda existia, fugiu, junto com suas tropas leais, e Paris ficou sem autoridade. O Comité Central da federação dos bairros ocupou este vácuo, e se instalou na prefeitura. O comité era formado por blanquistas, membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, Proudhonistas e uma miscelânea de indivíduos não-filiados politicamente, a maioria trabalhadores braçais, escritores e artistas.
Foram realizadas eleições obedecendo a princípios da democracia directa em todos os níveis da administração pública. Noventa representantes foram eleitos, dos quais apenas vinte e cinco eram trabalhadores, sendo os restantes pequeno-burgueses. A polícia foi abolida e substituída pela Guarda Nacional. O Ensino saiu das mãos da Igreja, foi criada a previdência social. Entretanto, os revolucionários eram maioria. Em semanas, a Comuna introduziu mais reformas do que os governos dos dois séculos anteriores. Vejam-se algumas delas:
O trabalho nocturno foi abolido; Oficinas que estavam fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas; residências vazias foram desapropriadas e ocupadas por desalojados; todos os descontos aos salários foram abolidos; a jornada de trabalho foi reduzida, sendo proposta a jornada de oito horas; os sindicatos foram legalizados. projectou-se a autogestão das fábricas, não tendo sido possível implantá-la. Instituiu-se a igualdade entre os sexos; o casamento passou a se gratuito e simplificado; a pena de morte foi abolida; o cargo de juiz se tornou electivo; o calendário revolucionário foi novamente adoptado; o Estado e a Igreja foram separados; a educação passou a ser gratuita, secular, e compulsória. todas as escolas passaram a ser de sexo misto. A Bandeira Vermelha foi adoptada como símbolo da Unidade Federal da Humanidade; o internacionalismo foi posto em prática: o facto de se ser estrangeiro passou a ser irrelevante; o serviço militar obrigatório e o exército regular foram abolidos; todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a assistência pública e os telégrafos; o salário dos professores foi duplicado. A utopia, brilhando esplendorosamente no quotidiano dos franceses - o tempo das cerejas.
A Alemanha, apoiante do Governo Provisório, libertou prisioneiros franceses da recente guerra para reforçar o exército francês que iria investir contra a Comuna. Foi uma luta desproporcionada. Cem mil soldados do exército contra menos de quinze mil voluntários da Guarda Nacional. Enquanto resistiam, foram destruindo os símbolos do Império napoleónico, edifícios, monumentos e aplicaram a pena capital aos reféns, quase todos padres, juízes e agentes da polícia. A Comuna executou uma centena de pessoas e provocou novecentas baixas, mas a contrapartida foi horrível - os soldados do governo de Thiers chacinaram entre cinquenta e oitenta mil pessoas. Aos combates seguiram-se as execuções sumárias. Quarenta mil parisienses foram presos e muitos deles executados. Só pararam as execuções quando o número de cadáveres insepultos fez temer pelo perigo de uma epidemia.
A herança da Comuna de Paris é ainda hoje bem patente nas esquerdas, pois foi a primeira tentativa de instaurar um governo popular assente na democracia directa. As bandeiras vermelhas, o hino A Internacional, composto em 1888 por Pierre Degeyter, operário anarquista de origem belga que leu um livro de poemas de Eugéne Pottier, operário francês também anarquista, membro da Comuna de Paris, em cuja defesa participou.
A principal simbologia das esquerdas vem, pois, desses dias longínquos da Primavera de 1871, em que as cerejeiras floriam, numa, nunca cumprida, promessa de frutos vermelhos… Há uns tempos atrás, publiquei aqui um texto dedicado aos "serões da província" nos tempos da ditadura, ou seja, como é que os antifascistas se reuniam e o que faziam nas suas reuniões sociais. Ouvir discos, de preferência proibidos, era uma das formas preferidas de preencher esses serões. Há quarenta anos, a pequena burguesia bem-pensante, era sobretudo francófona. Por isso, Yves Montand, Georges Brassens, Jacques Brel, Jean Ferrat, dominavam esses serões.
Uma das canções que quase nunca falhava era Le Temps des cerises, cantada pelo Yves Montand. Vamos ouvi-la:
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