coordenação de Augusta Clara de Matos
Quem Conta Um Conto...
Não há nada que nos deixe tão conscientes
de quão improvisada é a
existência humana como uma canção inacabada.
Ou uma velha agenda de moradas.
Carson McCullers
Carson McCullers Uma Árvore, Um Rochedo,
Uma Nuvem
(tradução de Jorge de Sena)
Nessa manhã, chovia e estava ainda escuro. Quando o rapaz passou pelo café ambulante(1), chegara quase ao fim do seu caminho, e entrou para tomar uma chávena de café. O estabelecimento, aberto a noite toda, pertencia a um homem azedo e mesquinho, chamado Leo. Depois da rua, agreste e vazia, o café parecia acolhedor e resplandecente: ao longo do balcão havia um par de soldados, três operários da fiação e, a um canto, um homem curvado para diante e com o nariz e parte da cara metidos numa caneca de cerveja. O rapaz trazia um carapuço como usam os aviadores. Quando entrou no café, desapertou a presilha e levantou a aba direita para cima da orelhita vermelha; muitas vezes, ao beber o seu café, alguém lhe dirigia amigavelmente a palavra. Mas, nesta manhã, nem Leo lhe olhou para a cara, nem qualquer dos homens estava falando. Pagou e ia a sair do café, quando uma voz gritou por ele:
- Ó filho! Eh filho!
Voltou-se, e o homem do canto chamava-o com um dedo e abanando a cabeça. Tirara a cara da caneca de cerveja e, de súbito, parecia sentir-se muito feliz. O homem era alto e pálido, narigudo, de cabelo ruivo descorado.
- Eh filho!
O rapaz dirigiu-se para ele. Era um rapaz pouco desenvolvido, de uns doze anos, com um dos ombros mais alto do que o outro, por causa do peso da saca dos jornais. O rosto era vulgar, sardento, e os olhos eram redondos olhos infantis.
- O senhor chamou?
O homem pôs a mão no ombro do garoto dos jornais, depois agarrou-lhe o queixo e voltou-lhe, devagar, a cara de um lado para o outro. O rapaz recuou, perturbado.
- Então, que é lá isso?
A voz do rapaz era aguda; e no interior do café reinou, subitamente, um grande silêncio.
O homem disse devagar:
- Gosto de ti.
Ao longo do balcão, os homens riram-se. O rapaz, carrancudo e desviado, não sabia que fazer. Olhou por cima do balcão para Leo, e Leo observava-o com um vago e cansado ar de troça. O rapaz tentou rir também. Mas o homem ficara sério e triste.
- Eu não queria «entrar» contigo, meu filho - disse. - Senta-te e bebe uma cerveja. Há uma coisa que eu preciso de explicar.
Cautelosamente, com o rabo do olho, o ardina interrogou os homens do balcão, para ver o que deveria fazer. Mas haviam voltado às suas cervejas ou aos almoços e não repararam. Leo pôs no balcão uma chávena de café e uma leiteirinha.
- É menor - disse Leo.
O garoto dos jornais içou-se para o banco. A orelha do lado da aba levantada do carapuço era muito pequena e estava rubra. O homem acenava-lhe com a cabeça, gravemente.
- É importante. - E levou a mão ao bolso traseiro das calças, tirando qualquer coisa que segurou na palma da mão, para o rapaz ver. - Olha com muita atenção.
O rapaz fitou aquilo, mas nada havia que ver com muita atenção. Na mão grande e encardida, o homem segurava uma fotografia. O rosto de uma mulher, mas esmaecido, a ponto de só o chapéu e o vestido que usava sobressaírem claramente.
- Vês? - perguntou o homem.
O rapaz acenou que sim, e o homem pôs na palma da mão outro retrato. A mulher estava em fato de banho, numa praia. O fato fazia-lhe o estômago muito saído e era, principalmente, o que se notava.
- Olhaste bem? - e, debruçando-se para mais perto, acabou por perguntar: - Já a viste alguma vez?
O rapaz não se mexia no banco, fitando de esguelha o homem.
- Não, que eu saiba.
- Muito bem. O homem soprou as fotografias e voltou aguardá-las na algibeira. - Era minha mulher.
- Morreu? - perguntou o rapaz.
Vagarosamente, o homem abanou a cabeça. Franziu os lábios como se para assobiar e respondeu num prolongado suspiro:
- Huuuuum... Eu explico.
A cerveja no balcão, em frente do homem, estava numa grande caneca castanha. Não a levantava para beber. Pelo contrário, curvava-se e, pondo a cara em cima da borda, ficava assim um momento. Depois, com as mãos, voltava a caneca e beberricava.
- Uma destas noites você adormece com a narigueta nacaneca e afoga-se - disse Leo. - «Ilustre viandante, afoga-se em cerveja.» Que linda morte!
O ardina tentou fazer sinal a Leo. Enquanto o homem não olhava, franziu a cara e com a boca procurou silenciosamente perguntar: Bêbado? - Mas Leo apenas ergueu o sobrolho e voltou-se para pôr umas rosadas fatias de presunto na chapa do fogão. O homem afastou de si a caneca, endireitou-se e pousou no balcão as mãos enclavinhadas. A expressão do rosto era triste, ao olharpara o ardina. Não pestanejava, só de vez em quando as pálpebras, com delicada gravidade, desciam sobre os olhos verdes claros. Quase amanhecia e o rapaz acomodou o peso da saca dos jornais. - Do que eu falo é de amor - disse o homem. - Cá para mim, é uma ciência.
O rapaz deixava-se escorregar do banco. Mas o homem ergueu o indicador e algo havia nele que prendia o rapaz e o não deixava ir-se embora.
- Há doze anos casei com essa mulher da fotografia. Foi minha mulher durante um ano, nove meses, três dias e duas noites. Amava-a. Sim... - e, afinando a voz incerta e divagadora, repetiu: - Amava-a. E pensava que ela gostava de mim. Eu era engenheiro dos caminhos de ferro. Não lhe faltava conforto e luxo. Nunca me passou pela cabeça que ela se não sentisse satisfeita. Mas sabes tu o que aconteceu?
- Miau!... - disse Leo.
O homem não desviou os olhos da cara do rapaz. - Deixou-me. Uma noite, cheguei, a casa estava vazia, ela tinha-se ido embora. Deixou-me.
- Com outro tipo? - perguntou o rapaz.
Suavemente, o homem pôs a palma da mão no balcão. - Ó meu filho; naturalmente! Uma mulher não foge assim, sozinha.
O café estava sossegado e a chuva miudinha, escura e infinda, lá fora. Leo calcou o presunto que fritava, com os dentes do comprido garfo. - Pois tens então andado há onze anos atrás da borboleta, meu patife de uma figa!
Pela primeira vez, o homem lançou um olhar a Leo. - Faça-me o favor de não ser ordinário. Além de que eu não estou a falar consigo. - E voltou a dirigir-se ao rapaz numa meia voz segredada e confiante: - A gente não lhe dá atenção, O. K.?
O ardina acenou dubiamente.
- Foi assim - continuou o homem. - Sou uma pessoa que sente muitas coisas. Durante a vida inteira, uma e outra coisa me impressionou. O luar. As pernas de uma rapariga bonita. Uma coisa primeiro, outra depois. Mas o caso é que, quando gozava qualquer coisa, havia em mim a peculiar sensação de aquilo se demorar cá dentro. Nada parecia acabar ou acertar com as mais coisas. Mulheres? Tive a minha conta. Era o mesmo. Depois, aquilo ficava a vibrar em mim. É que eu era um homem que nunca tinha amado de verdade.
Muito devagar, fechou as pálpebras, e o gesto era como que o cair do pano num fim de acto de uma peça. Quando falou de novo, a voz excitara-se, e as palavras saíam rápidas - e os lobos das suas orelhas grandes e moles pareciam tremer.
- Encontrei então esta mulher. Eu tinha cinquenta e um anos e ela dizia ter sempre trinta. Conheci-a numa estação de serviço e casámos em três dias. E sabes como era aquilo? Isso é o que eu não sei dizer-te. Tudo o que eu jamais sentira se concentrou à volta desta mulher. Nunca mais tive as sensações à solta, todas acabavam nela.
O homem calou-se de súbito e esfregou o nariz comprido. A voz desceu a um murmúrio regular e lamentoso: - Não estou a explicar bem. O que aconteceu foi isto. Havia dentro de mim esses sentimentos belos e pequenos prazeres vagos. E esta mulher foi para a minha alma como que um ponto de reunião. Através dela passei esses pedacinhos de mim e saí completo. Estás a perceber?
- Como se chamava ela? - perguntou o rapaz.
- Oh! - respondeu ele. - Eu chamava-lhe Dodo. Mas isso é irrelevante.
- Fez por que ela voltasse?
O homem parecia não ouvir. - Nestas circunstâncias, bem podes imaginar como eu fiquei, depois que ela me deixou.
Leo tirou o presunto do lume e dobrou duas fatias dentro de um pãozinho. O rosto dele era terroso, com os olhos oblíquos, e um nariz torcido, marcado por suaves sombras azuladas. Um dos operários pediu, com um sinal, mais café, e Leo serviu-lho. Não dava de graça tais repetições. O operário da fiação comia ali todas as manhãs, mas Leo, quanto melhor conhecia os fregueses, mais rudemente os tratava. E mastigava o seu pão, como se a si próprio o regateasse.
- E nunca mais conseguiu apanhá-la?
O rapaz não sabia que pensar do homem, e o seu rosto infantil tinha uma expressão incerta, mista de curiosidade e dúvida. Era novo na venda; e ainda estranhava a rua, na madrugada singular e escura.
- Sim - disse o homem. - Tomei certas medidas para a fazer voltar. Andei a tentar localizá-la. Fui a Tulsa, onde ela tinha pessoas de família. E a Mobile. Fui a todas as terras a que ela alguma vez se referira, e procurei cada um dos homens que ela antes de mim conhecera. Tulsa, Atlanta, Chicago, Cheehaw, Memphis... O melhor de dois anos passei eu a ver se a apanhava.
- Mas o par desaparecera da face da terra! - disse Leo.
- Não o ouças - disse o homem, em tom de confidência. - E esquece também esses dois anos. Não importam. O que interessa é que, por volta do terceiro ano, me começou a acontecer uma coisa curiosa.
- O quê? - perguntou o rapaz.
O homem inclinou-se e tombou a caneca para beberricar um pouco de cerveja. Mas, ao pender sobre a caneca, as narinas vibraram ligeiramente; aspirou o cheiro acre da cerveja, e não bebeu. - Para começar, o amor é uma coisa curiosa. Primeiro, só pensava em fazê-la voltar. Era uma espécie de mania. Mas, à medida que o tempo passava, procurei lembrar-me dela. E sabes o que aconteceu?
- Não - respondeu o rapaz.
- Quando me deitei numa cama e fiz por pensar nela, o meu espírito estava em branco. Não era capaz de a ver. Bem pegava nos retratos. Não adiantava. Nem nada. Em branco. És capaz de imaginar isto?
- Eh, Mac! - clamou Leo para o extremo do balcão. - És capaz de imaginar o espírito deste pespego em branco?
Vagarosamente, como se enxotasse moscas com um leque, o homem adejou com a mão. Os olhos verdes concentravam-se fixamente na carita inexpressiva do ardina.
- Mas, um caco de vidro encontrado no passeio. Ou uma musiqueta de caixa de música. Uma sombra na parede, à noite. E eu lembrava-me. Podia acontecer na rua, que eu chorava ou dava com a cabeça num candeeiro. Estás a ver?
- Um caco de vidro... - repetiu o rapaz.
- Qualquer coisa. Punha-me a andar à volta, impotente para o como ou o quando lembrar-me dela. Pode a gente pensar que se defende como com um escudo. Mas o recordar não aparece a um homem, pela frente... Vem de esguelha, pelos cantos. E eu estava à mercê de quanto via e ouvia. De repente, em vez de ser eu a passar o país inteiro a pente fino à procura dela, começou ela a perseguir-me na minha própria alma. Ela a perseguir-me, repara bem! E na minha alma.
O rapaz perguntou, então: - Em que região estava o senhor?
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