Daniel Filipe traz um poema ao Terreiro da Lusofonia (e o Luís Cília canta outro)
Daniel Filipe nasceu em 1925 na ilha da Boavista, em Cabo Verde, mas faz indissoluvelmente parte da história da Literatura Portuguesa do século XX – digamos que ele pertence aos dois países – a Cabo Verde porque ali nasceu, a Portugal porque aqui viveu, sofreu, amou e escreveu a sua poesia maravilhosa. É um convidado de honra neste Terreiro da Lusofonia.
Activista cultural e político, no final dos anos 50 trabalhou na delegação do Porto do Diário Ilustrado. Cordial, Ali se relacionou com um grupo de escritores antifascistas como ele – Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Luís Veiga Leitão e outros (estamos a trazê-los aqui a todos eles). Foi este grupo que criou as «Notícias do Bloqueio», título de um poema de Egito Gonçalves, série de nove «fascículos de poesia», publicados no Porto entre 1957 e 1961. A PIDE prendeu-o, sendo, segundo consta, barbaramente torturado. Com 39 anos, faleceu em Lisboa em 1964.
Entre a sua obra destaca-se: «O Viageiro Solitário» (1951), «A Invenção do Amor» (1961) e «Pátria Lugar de Exílio» (1963). Eis o poema que deu nome a esta última colectânea:
Pátria, lugar de exílio geométrico afã ou venenoso idílio na serena manhã.
Pátria, mas terra agreste; terra, apesar da morte. Pátria sem medo a leste. Lugar de exílio a norte.
Pátria terra, lugar, cemitério adiado com vista para o mar e um tempo equivocado.
Terra, débil lamento na temerosa noite. Sobre os carrascos, vento, Desfere o teuaçoite!
E Em todas as esquinas da cidade Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes… dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
Lembram-se? É assim que começa «A Invenção do Amor», o belo poema de Daniel Filipe. E bem necessário seria que um anúncio solicitando uma verdadeira Esquerda fosse publicá-lo “com carácter de urgência” em todos os jornais, gritá-lo pela rádio, mostrá-lo na televisão, pois existem muitos milhares de cidadãos de esquerda que não se revêem em qualquer das organizações, ditas de esquerda, existentes e que sentem bloqueados, cercados pela direita, pela falsa esquerda e pelo seu ideal de uma esquerda autêntica. Mas, perguntarão, então não existem já numerosos partidos e movimentos de esquerda, dentro e fora do Parlamento?
Depende de como definimos o conceito de esquerda. O poeta francês Jean-Arthur Rimbaud disse que era preciso «mudar a vida». Karl Marx, embora, como Engels, nunca tenha dito ser «de esquerda», afirmou que era indispensável «transformar o mundo». A mudança da vida, isto é, dos valores mercantilistas e da lógica consumista, que regem a sociedade em que vivemos, e a transformação do mundo, ou seja a Revolução que varra as desigualdades, as injustiças sociais, para mim constituem duas excelentes definições do que deve enformar um pensamento de esquerda.
Os partidos da esquerda parlamentar, embora as suas bases programáticas estejam preenchidas com respeitáveis princípios, logo que envolvidos nas questões práticas, depressa esquecem ou ultrapassam esses princípios em nome de um pragmatismo que visa objectivos de curto prazo. Objectivos de curto prazo que são o derrube do governo para os dois partidos de esquerda e a conservação do poder para o partido do governo. O qual, não esqueçamos, também se reivindica dos valores da esquerda.
Compreende-se a urgência de derrubar o governo para uns e de conservar o poder para o outro. O que já não se compreende é que haja acordos, explícitos ou tácitos, com partidos de direita, para uma ou outra coisa. Onde ficam então os tais bonitos princípios anunciados? Teoria e praxis têm de estar em consonância, sem o que ambas perdem a razão de ser. Mudar a vida e transformar o mundo? Nem tal coisa lhes passa pela cabeça. Dos partidos e movimentos da esquerda extra parlamentar dir-se-ia que, na sua maioria, são memórias, reminiscências do período revolucionário e ligados a doutrinários como Trotsky, Enver Hodja, Mao Tse Tung, etc.. Estão fora do contexto histórico, social e político em que vivemos. Não me parece que passe por eles a saída do labirinto, do bloqueio que nos aprisiona.
Porquê? Por que motivo a prática dos partidos, marxistas ou socialistas, obedece a um pragmatismo que atropela princípios básicos daquilo que se entende por política de esquerda? Porque esses princípios muitas vezes não são compatíveis com a ânsia de obtenção de votos e constituem empecilho ao seu funcionamento. Há uma graça antiga que diz .”Se a bebida te prejudica o trabalho, não hesites – deixa de trabalhar!” . Neste caso, dir-se-ia “se os teus objectivos são incompatíveis com teus os princípios, não hesites – esquece os princípios!” .
Quando digo que compreendo a urgência de fazer cair este governo, dito socialista, compreendo mesmo. Estamos bloqueados num lodaçal de corrupção, de clientelismo, de nepotismo, de negociatas obscuras. É preciso sair deste bloqueio. No entanto, quando digo sair, falo mesmo de erradicar todas estas doenças que afectam a nossa democracia. Que a afectam ao ponto de termos de pensar duas vezes antes de continuarmos a designá-la por esse nome. O que estão a fazer, partidos e sindicatos que se opõem ao actual governo não é isso. O que se está a fazer é a desgastar a credibilidade deste governo (embora me pareça difícil desgastar algo que já não existe), e substituí-lo por outro que, com outras pessoas é certo, continuará na mesma senda de desonestidade, desbaratamento do erário público, favorecimentos ilícitos, corrupção desbragada…
Ninguém me venha dizer que com o PSD as coisas vão melhorar. Isso já não seria ingenuidade, nem memória curta. O termo apropriado é outro e não é agradável. Por outro lado, a dar-se essa mudança, enquanto o PSD se afunda em novos escândalos, o PS, na oposição, levanta lebres, ataca, reabilita-se e aí o termos recauchutado nas eleições seguintes. E assim sucessivamente. Não me venham os senhores do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda, da Intersindical, dizer que fazer cair o governo é um objectivo primordial, que essa é a principal tarefa da esquerda. A tarefa da esquerda, se existisse, seria a de derrubar este sistema bipartidário, a de romper este círculo vicioso, este circo corrupto e infernal em que encontramos encerrados.
O que é prioritário é lutar pela criação de uma sociedade livre de corrupção e de oportunismo. Lutar contra o PS, claro, mas sem esquecer que o PSD é um gémeo e que substituir um pelo outro é nada mudar. Ambos, têm de ser combatidos em bloco como se fossem um só (e para muitos efeitos, são-no). Quem define como prioritária a queda do PS, visa a perpetuação do sistema. Derrubar Sócrates, sim. Substituí-lo por Pedro Passos Coelho? Para quê?
E mais: começa para muitos a ser evidente (para outros sempre o foi) que esta esquerda faz parte integrante do sistema. De que viveriam políticos e sindicalistas de esquerda se não houvesse partidos «socialistas» e «social-democratas» a fornecer-lhe abundante matéria-prima para a sua actividade? O que seria dos cangalheiros se ninguém morresse? Esquerda precisa-se - a que temos está boa para o Museu da Madame Tussaud.
Para muita gente constituirá um mistério por que motivo, pessoas como eu, com idade para ter juízo, ainda perdem tempo a lutar com moinhos de vento.
Respondo-lhes, em meu nome e dos que como eu não deixam de protestar, mesmo quando, como é o caso, isso parece inútil, com palavras de um poeta, do Egito Gonçalves, nas suas «Notícias do Bloqueio»:
Mas diz-lhes que se mantém indevassável o segredo das torres que nos erguem, e suspensa delas uma flor em lume grita o seu nome incandescente e puro.