Domingo, 8 de Maio de 2011

E VAI UM... A Cinéfila - Carla Romualdo

Carla Romualdo  A Cinéfila

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Nos grandes armazéns da rua Preciados, a um sábado pela tarde, quando caem os primeiros pingos grossos de chuva – pérolas de gelo, prenúncio da neve que cairá nuns dias mais -, nos grandes armazéns, dizia, depósito sem alma de livros e música, empilhados em quatro andares sem um único recanto onde sentar-se, cruzo-me com a mulher que um dia imaginei e que afinal existia, ou talvez tenha passado a existir nesse momento em que a pensei, talvez tenha irrompido nesse dia pelo mundo, com cinquenta anos feitos, com uma biografia, uma infância que lhe enche as molduras de fotos que terá na sala, um passado que a trouxe até aqui, a este sábado à tarde em pleno Inverno, nos grandes armazéns da rua Preciados.

 

Chamar-se-á Gloria ou Rocío ou Blanca, ou outro nome luminoso e festivo, porque seria demasiado cruel chamar-lhe Soledad.

 

Coloco-me atrás dela na caixa e espreito sem vergonha os artigos que pousa sobre o balcão, menos por coscuvilhice do que para confirmar o que já conheço, o que imaginei certo dia, longe da rua Preciados e dos seus grandes armazéns.

 

“How green was my valley”, “It’s a wonderful life”, “The magnificent Ambersons”, “Meet John Doe”. Pousa-os um por um com carinho no balcão, como se desfrutasse já da sua companhia, como se sentisse já por cada um a ternura que nos une a um velho amigo, como se de cada um conhecesse as virtudes e as manias, e tomasse ambas com o enternecimento risonho que reservamos aos que nos são muito queridos.

 

O funcionário da caixa desliza-os suavemente pelo tapete e pousa-os com cuidado após o bip do leitor de código de barras, e Rocío (porque afinal me decidi chamar-lhe assim, Rocío, orvalho, frescura da manhã) olha o rapaz com gratidão, pressente-o conhecedor desses comuns segredos que outros não vêem, por mais que se desfilem frente aos seus olhos, estende-lhe o cartão com um quase imperceptível tremor nos dedos, ele passa-o na máquina, ela digita o código, a operação desenrola-se sem uma única troca de olhares, e quando a máquina debita o seu talão, já ele guardou tudo numa bolsa de papel reciclado, agora que os sacos de plástico se fizeram malditos, e só então se olham fugazmente, murmurando um agradecimento mútuo.

 

E eu perco Rocío para sempre, mas sei, porque a conheço, que ela passará o fim-de-semana em casa, com o iogurte de meio quilo sobre os joelhos, as persianas semicerradas para que a luz não entre, e porque o mundo de fora lhe interessa cada vez menos à medida que o outro, o seu, se vai ampliando.

 

E enquanto George Bailey corre a cidade em desespero, e Rocío se encolhe no sofá, reconfortada na sua tristeza, eu penso como seria o dia de hoje na rua Preciados se Rocío nunca tivesse nascido, se não houvesse esta tarde em que coincidimos nos grandes armazéns e eu a deixei fugir para sempre sem saber que a inventei. 

 

 

publicado por Augusta Clara às 23:30
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E VAI UM... A OCDE e os seus números - Rui de Oliveira

 

Rui de Oliveira  A OCDE e os seus números

 

(ilustração de José Magalhães)

 

 

Este tema tem estado a ser debatido com o pluralismo de opiniões que é norma neste blogue. Algumas das teses expendidas reflectem, naturalmente, as tendências ideológicas dos seus autores o que, numa perspectiva mais ampla, fere a objectividade das conclusões. Este texto de Rui de Oliveira, publicado em Dezembro passado, repõe essa objectividade, fugindo à manipulação que usualmente se faz dos números. Parece-nos útil repetir a publicação de A OCDE e os seus números.

 

Dados factuais vindos a público nos últimos tempos merecem certamente a reflexão dos leitores do Estrolabio, nuns casos desfazendo algumas inverdades , noutros tentando colocar numa perspectiva mais justa a crítica às políticas educativas governamentais.

 

1. Surpreendeu-me, da parte de alguns que tinham há cerca de 2 anos criticado como demasiado “favoráveis” ao Governo as estimativas da OCDE, afirmar-se agora, na defesa do ensino privado, que “…um aluno do ensino não-estatal contratualizado (ENEC) custa-nos a todos 4.200 euros por ano, um aluno do ensino estatal custa-nos 5.200 euros por ano (OCDE)” (in Joaquim Azevedo, Público 26-11-2010).

 

Não será exacto. Não só o esclarecimento “oficial” em artigo do Secretário de Estado da Educação (vide Torcato da Mata, in http://www.aventar.eu/2010/12/04/hoje-nasceram-galinhas-com-dentes/) contraria aqueles valores, como um acérrimo contraditor da política educativa do Governo, Santiago Carrilho, em artigo no Público (8-12-2010) explica “… como os números usados pela OCDE se referem ao ano de 2007, há que ir ao respectivo Orçamento do Estado para os colher sem a tal ponderação. Vemos, assim, que foram despendidos 4.971,7 milhões de euros com 1.313.523 alunos. O que dá um custo médio de 3.785 euros. Bem longe dos 5.200 euros invocados por Joaquim Azevedo. E se os 4.200 que aponta como custo do privado estão certos, então a conclusão inverte o ónus da mentira: o custo do ensino privado é superior ao custo do ensino público.” E, sobre o fundo da questão, a revisão das condições de financiamento das escolas privadas, clarifica, com o que estou em acordo absoluto,

 

O sistema de ensino português tem dois subsistemas: um público, outro privado. Querer tornar os dois indiferenciáveis é uma subtileza para fazer implodir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino.” E essa está fixada constitucionalmente e é a obrigação de criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”.

 

2. Outro leque de dados é o divulgado pelo PISA (Programme for International Student Assessment) recentemente. A sua leitura confirma uma incontestável melhoria, não tanto no lugar dos estudantes portugueses (ainda modesto) na tabela do universo escolar dos países testados, mas sobretudo na boa taxa de progressão na literacia da leitura e das ciências, menos boa na literacia matemática. Parece indiscutível que medidas estruturais favoreceram esta progressão, o Plano Nacional de Leitura, o Plano de Acção para a Matemática, a modernização do parque escolar e a melhoria das suas bibliotecas, entre outras.

 

Como também, no plano curricular, um reforço de avaliação através de exames formais, mesmo as aulas de substituição, devem ter pesado para um clima de maior responsabilidade que se reflecte a prazo nos resultados obtidos. E, como os testes do PISA, isentos (segundo os observadores) de influência governamental, são aleatórios e (quase) iguais para todos os 470 mil alunos dos 33 países avaliados, cairá bastante por terra o mito do facilitismo intencional dos nossos exames, sendo mais provável o carácter errático da sua preparação a nível ministerial.

 

Por último e segundo especialistas, o volume de dados fornecidos pela OCDE (ainda não totalmente) é de dimensão suficiente para um estudo científico aprofundado durante algum tempo, no sentido de avaliar com exactidão aspectos parcelares como o investimento em computadores portáteis, o acesso à banda larga, o aumento do apoio social escolar, a formação dos docentes, a criação de novas ofertas em cursos profissionais, etc, etc. Dispensar-se-ia, pois, tanto uma euforia governamental excessiva, quanto uma reacção sindical e corporativa dos professores que não saem mal deste retrato internacional – desde que aceitem de boa fé uma sua avaliação rigorosa.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 23:00
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E VAI UM... O que importa o nome da rosa? - a rose by any other name would smell as sweet - l’important c’est la rose – por Carlos Loures

 

Carlos Loures O que importa o nome da rosa? - a rose by any other name would smell as sweet - l’important c’est la rose

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

Para quem aspira a uma democracia plena, o cenário da vida política portuguesa, da nossa «democracia», não podia ser mais desolador. Quando o ar está abafado dentro de casa, abre-se a janela e aspira-se ar puro. Porém, abrindo a janela, olhando globalmente o planeta, o ar é mais sufocante e o panorama é ainda mais assustador. Como num pesadelo ou num quadro de Dalí, num labirinto soturno, seres humanos sonâmbulos, errantes, incaracterísticos, vagueiam, enquanto um animal mutante e híbrido os persegue, devora e logo os regurgita devidamente educados, transformados em humanóides-socializados, em membros indiferenciados de uma gigantesca colmeia com milhares de milhões de corações, pulsando ao mesmo ritmo. Um a um, os seres vão sendo agarrados. Mas não fogem, oferecem-se aos dentes da fera com a indiferença de quem nada quer fazer para o evitar. Porque ser devorados e regurgitados, convertidos em peças da máquina global, parece ser o principal objectivo das suas vidas. E chamam a essa transmutação perversa «originalidade»! Herbert Marcuse (1898-1979), o filósofo norte-americano de origem alemã, um dos mais importantes pensadores da Escola de Francoforte, explica-nos como o sistema, através de um marketing sofisticado, e utilizando os seus dispositivos de controlo, consegue que o «homem-unidemensional» assuma como seus os objectivos do sistema e como suas as necessidades do sistema (confundindo as formas de satisfação socialmente exigidas com as formas de satisfação genuinamente individuais – formas que, numa sociedade saudável, deveriam estar em dialéctico conflito). «Deste modo», conclui Marcuse, «a sociedade estabelecida assenta nos próprios pensamentos, nos próprios sentimentos e inclusivamente nos próprios corpos da maioria dos indivíduos». Seria interessante que alguém estudasse a intertextualidade entre os conceitos de homem-massa, de Ortega y Gasset (a que já aqui aludi en passant) e o de homem unidimensional, de Marcuse. Ambos se parecem referir ao homem resultante da sociedade industrial – embora os modelos de um e de outro possam estar separados por duas ou três décadas e, portanto, algo desfasados. O pressuposto de Engels, segundo o qual é a vida que determina a consciência e não o contrário, é claramente assumido por Marcuse. A sociedade unidimensional, orientada pelo marketing, a sociedade de consumo como mais habitualmente dizemos, impõe um padrão de vida, esse padrão arrasta consigo uma ideologia de vida e essa ideologia molda a consciência do homem. Resulta no homem unidimensional. Todos sabemos como, por exemplo, os adolescentes, na sua ânsia de se afirmarem como seres únicos e diferenciados, adoptam os hábitos da maioria com a insolência e a agressividade de quem está a inovar. Cabelos compridos, ou curtos, saias idem, piercings, tatuagens – coisas vulgares e vulgarizadas, massificadas – são usadas pelos jovens com a sensação de que estão a participar numa revolução. Como as variáveis não são muitas, a novidade de hoje pode ter sido a velharia de há oitenta anos e vice-versa Na realidade não chocam ninguém, não revolucionam nada – enriquecem os velhos das multinacionais que lhes impingem a tralha com que se ataviam e chateiam os pais. Os avós não se sentem incomodados, porque já viram este filme diversas vezes. Refiro o exemplo dos adolescentes porque neles é mais visível o alinhamento numa massificação de usos, roupas, músicas, com essa falsíssima sensação de corajosa originalidade. Na realidade, nos adultos, a massificação é semelhante, embora não tão evidente. Porque o adulto vai tendo tempo para cultivar uma capa de personalidade única e invulgar, sob a qual esconde a sua massificada vulgaridade. As modas que os jovens e os menos jovens adoptam com a convicção de que estão a definir uma personalidade única, são estudadas meticulosamente por gabinetes de marketing. O mercado é dividido em grupos-alvo, segmentados sócio-demograficamente, em classes, segundo o sexo e a faixa etária, considerando o habitat, se urbano, se rural. Nós a levarmos uma vida cultivando o mito de que temos uma personalidade única e irrepetível e os sacanas dos copywriters e dos accounts a arrumarem-nos em meia-dúzia de categorias, a espetarem-nos no peito, como insectos no álbum de um entomólogo, um alfinete com um rótulo do género – Mulher, 43 anos, classe C1, habitat urbano. Tal como os adolescentes que, com a ideia estulta de que estão a ser rebeldes, estão a proceder como mansos cordeirinhos, os adultos compram os carros (escolhendo quase todos a mesma cor – desde há anos o cinzento metalizado), as roupas, os dentífricos, que o marketing lhes dita, sempre com a ilusão de que são uns gajos cheios de personalidade. E tal como acontece com as roupas e carros, as ideias políticas também são postas ao dispor dos «cidadãos - eleitores» já pensadas. Como se comer comida mastigada fosse uma vantagem. Toda a gente protesta, mas depois, no momento de votar, uma larga maioria vota num dos dois partidos do poder – comida super -mastigada! Falemos de nomenclatura. Que raio de nome havemos de dar a isto que tenho estado para aqui a defender? Temos de ir um pouco atrás. Quando critico os partidos do chamado «bloco central», faço-o tendo em conta as diferenças de índole programática entre os dois. O PS cada vez é menos socialista e não chega sequer a ser social-democrata. Quanto ao PSD, menos do que neo-liberal, não sei no que estava aquela gente a pensar quando crismou o PPD (embora os termos «popular» e «democrático» constituíssem já um monumental embuste). Agora, Partido Social-Democrata? Mas então ninguém, naquela casa sabe o que é a Social-Democracia? Nem o Pacheco Pereira? Nem o professor Marcelo? O Partido de Lenine era o Partido Social-Democrata Russo, inspirava-se em Marx e em Engels, e esteve na génese do PCUS. Social-Democracia ou Democracia-Social é a antítese da «democracia» neo-liberal. Mas enfim, a demagogia conduz a estes «equívocos». O Partido Socialista, parecia não se ter equivocado no nome, pois provém da Acção Socialista Portuguesa, constituída na sua maioria por gente formada na «cantera» (acho graça a este estúpido termo futeboleiro) do Partido Comunista. Era mesmo socialista que eles queriam dizer. Apenas porque dizer e fazer são coisas diferentes. Nem para todos, claro, houve e há socialistas honestos e que procuram ser coerentes com os seus ideais. No fundo, o que era preciso era realinhar as pessoas em novos partidos, digo eu e os que gostavam de ver a situação clarificada. Já noutra crónica lamentei a ausência de um deus ex machina que viesse pôr-nos o leque político na ordem, como quem ordena uma mão antes da partida de bisca ou de sueca. Porém, embora para os políticos, esta simulação de luta ideológica seja útil, Sócrates e Manuela Ferreira Leite, bem como a maioria dos seus mais destacados seguidores, deveriam estar todos no mesmo partido. São a mesma gente ambiciosa de poder, mas de ideologia pindérica. A questão central deste texto – a da ideologia que os media e o mercado impõem, através da televisão e da imprensa, ao homem comum, «unidimensional» ou «massa» – o artolas que paga o circo, mas que não tem direito a ir para o redondel. Paga para ver o espectáculo e não para nele participar. Por isso, voltemos ao tio Herbert: há um opusculozinho de Marcuse com um discurso que ele fez em Março de 1969 no aeroporto de Vancouver. De notar que as autoridades canadianas o tinham intimado, à sua chegada, na véspera a abandonar o país no dia seguinte – democracia, sim, mas devagar - Por isso ele fez uma palestra para estudantes que foram ao aeroporto. «Exigir o Impossível» foi o título dado ao livrinho onde a palestra foi registada. Título que retirou de um graffiti nas paredes da Sorbonne, no escaldante Maio do ano anterior: «Sejamos realistas, exijamos o impossível!» Porque só exigindo o impossível, sendo radicais (ou seja, indo à raiz dos problemas) é que podemos contrariar a manipulação que é feita às consciências de milhares de milhões de pessoas. Já não falo de socialismo, pois o termo está conspurcado pelas experiências históricas que conhecemos e por partidos bastardos como o nosso PS. Nem faz sentido invocar Marx (embora se lhe reconheça toda o saber e inteligência e o carácter científico que deu ao exercício da política). Devemos sempre exigir o impossível. E o impossível é ser dado a cada pessoa, apenas por ter nascido, aquilo a que tem direito, prover as suas necessidades físicas e intelectuais. Redesenhar a sociedade e construir um modelo voltado para as necessidades da família humana e não para a usura, para a ganância do lucro a todo o custo. Montar os dispositivos que permitam distribuir a riqueza existente de forma racional, dando a cada um a sua parte (porque não estamos a falar de a cada um segundo as suas capacidades ou segundo as suas necessidades – ou mesmo de acordo com a suas rapacidades. As necessidades são iguais – alimentação, vestuário e tratamento na doença. As outras necessidades, as de carácter intelectual – a educação, a cultura, a informação - podem ser satisfeitos de forma maciça, através das novas tecnologias, as que existem e as que vão existir. Tendo sempre em consideração a grande diversidade de opções que neste campo os seres humanos manifestam. E podem pôr a este sistema, assumidamente subversivo da ordem estabelecida, o nome que quiserem – socialismo, comunismo, cristianismo, anarquismo, o que queiram – até podem chamar-lhe social-democracia. Agora já percebem onde queria chegar com o título trilingue: O que importa o nome da rosa? - a rose by any other name would smell as sweet - l’important c’est la rose.

publicado por Augusta Clara às 22:00
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E VAI UM... 500 Anos da Loucura de Erasmo, e Damião de Góis - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  500 ANOS  DA  LOUCURA  DE  ERASMO,  E  DAMIÃO  DE  GÓIS

 

(ilustração de José Magalhães)

 

 

 

 

Neste abril de 2011 trascorre o V Centenário da publicação do Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão 1467-1536), um dos grandes clássicos do Renascimento europeu.

 

Na abertura da cena, assim falou a Loucura, não como um orador qualquer, mas recoberta de vestes femininas, feéricas, ainda mais no alto daquela pequena tribuna que domina o público lá embaixo:

 

“Apesar de toda e qualquer coisa que digam os homens de mim habitualmente (sei muito bem de fato como seja ruím a fama da loucura até mesmo entre os loucos), o tema que estou por expor basta suficientemente para demonstrar que sou eu quem está aqui presente. Eu aqui presente, digo, e nenhum outro, a alegrar homens e deuses com a minha potência divina. Eis a prova: não apenas me apresentei a falar nesta reunião plena de expectadores, todos os rostos improvisamente se iluminaram de uma nova e incomum alegria; haveis alçado a fronte, me haveis aplaudido com um riso amável e pleno de benevolência“.

 

A mulher multicolorida não fala como um pregador e não usa a sua pequenatribuna como um púlpito. Mas, recita palavras e conceitos aparentemente absurdos, mas que cedo tomam em mãos todo o público, homens e mulheres felizes, alegres, raptadas pela mensagem insólita – “A inteira vida dos mortais, no final das contas, o que é senão uma comédia na qual diversos atores se adiantam com máscaras diversas e recitam cada um deles a sua parte, até que o diretor não os faz deixar a cena? Muitas vezes depois faz com que se adiante a mesma pessoa maquilada diversamente, de maneira tal que aquele que antes recitara como um rei vestido de púrpura agora represente o servoem trapos. Tudofalso, certamente, mas não de outra forma se entra em cena.“

 

Assim, desconcertante, se apresentava naquele 1511 pelos tipos de uma pequena editora parisiense, a Jehan Petit, um apólogo paradoxal, Moria encomium, Erasmus declamatio. A partir de então o Renascimento europeu apresentava uma sua nova face, não mais carregada de dúvidas e ambiguidades, mas aberta a todas as invenções que a existência humana pode conhecer, desde que disponível à partipação com a Loucura.

 

O Elogio da Loucura, de Erasmo, logo se faz um clássico e passa a indicar caminhos.

 

O jovem Erasmo deseja aperfeiçoar seus estudos humanísticos na Itália. Assim, em 1506, encontra-se em Turim, onde obtém o doutorado em Teologia. Noperíodo 1505-1508 se fixa em Veneza, hóspede do grande editor Aldo Manuzio. Na Sereníssima República, Erasmo aperfeiçoa o seu grego e publica, com o amigo editor, a segunda edição das famosas Adagia, recolha e comentários de provérbios antigos, mais de três mil, alguns dos quais mais tarde desenvolvidos em tratados. Deixando Veneza, parte para Roma (1508-1509) e, em seguida, para a Inglaterra, onde se fixa mais longamente (1509-1514). Na sua demorada temporada londrina, conhece as peripécias iniciais em que cai o reinado de Henrique VIII, bem como convive em grande amizade intelectual com o humanista inglês, Thomas More. O Elogio da Loucura e a Utopia,  de More, serão os dois marcos que conduzirão os homens a um renovado espírito renascimental. De passagem, convém relembrar que o postoem que Thomas More coloca a sua utopia se localiza na costa brasileira, um pouco mais ao sul da atual Rio de Janeiro.

 

Damião de Góis, um dos máximos humanistas portugueses, soube desde logo deixar-se acativar pela Loucura. Tomado de admiração pela obra de Erasmo – além do Elogio da Loucura, igualmente, ainda que em outra direção, pelo erasmiano Ciceronianus, de 1528 – o jovem cavaleiro português, em serviços de seu Rei pelo Norte da Europa, toma os primeiros contatos com o sábio holandês em abril de 1533, com o pedido de um primeiro encontro pessoal.  Erasmo acolhe muito bem os desejos expressos por Damião de Góis. O encontro estava fixado, porém um evento exepcional impede o jovem estudioso português de imediatamente ir de encontro ao seu escolhido Mestre: tendo sido designado por D. João III, por indicação de seu amigo João de Barros para seu substituto no posto de Tesoureiro do Reino, encargo que o Cronista-Mór então deixava, Damião de Góis não pode senão regressar de imediato a Lisboa. Porém, o seu desejo de encontrar Erasmo e deixar-se guiar por ele nos seus estudos humanísticos não se arrefece. Poucos meses depois o jovem estudioso conseguiria recuperar a  meta anteriormente desejada. Antes do findar de 1533, alcança a benevolência do Rei para não continuar no honroso cargo. Podia, desta maneira, retomar a sua peregrinação cultural. (Sobre este tema, cf. S. Castro, “A Pádua de Damião de Góis e a cridse dos estudos filosóficos na Universidade patavina depois da primeira edição do Mundus Novus, de Vespucci, em 15003“, in AA.VV. Actas do “Congresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento“, Braga, 2003; igualmente, in ESSED, Rivista telematica dei Storia delle Esplorazioni e delle Scoperte Geografiche, 1 (2003), n° 1).

 

Damião de Góis soube escutar os ditos da Loucura, e assim renunciava ao poder e aos benefícios materiais, em favor dos ideiais que sempre cultivara.

 

Pelos conselhos-guias de Erasmo ele parte para Pádua e ali conquista definitivamente aqueles valores que fazem dele uma das vozes maiores do Renascimento português.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 21:00
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E VAI UM... Águia de Bonelli (Aquila fasciata) - Andreia Dias

 

(este post da Andreia está dividido em duas partes e, como o automático não está a funcionar, cliquem às 20,30h para verem a segunda)

 

 

Andreia Dias  Águia de Bonelli (Aquila fasciata)

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Destas águias, não me é particularmente fácil falar. Falo e logo sinto borboletas que me pululam nos pés e rapidamente me chegam às orelhas. E tudo isto, devido ao carinho que lhes tenho. Afinal de contas, dediquei-lhes na íntegra, os últimos 4 anos. Foi um amor à primeira vista… pela sua “fragilidade e robustez”. É um contra-senso, eu sei, mas é daqueles “amores-paixão”, dos que nunca viram ódio.

 

É difícil falar do que se gosta muito, quase tanto como falarmos de nós próprios. Por instantes, ponho o meu profissionalismo de lado para falar de um animal. Estas águias aniquilam o mais robusto humano, apenas com o olhar. Hoje, quase viro poeta, só de escrever sobre a águia de Bonelli, perdoem-me os tantos (verdadeiros) poetas que me lêem…

 

Esta espécie foi descoberta para a ciência pelo italiano, Andrea Bonelii (1819) e não fosse a coincidência… a Andreia das Bonellis!

Sei exactamente quando e onde vi o primeiro ovo, o primeiro “bebé”, a caçarem, a dormitarem, a copularem… as que tiveram bebés e com as asas abertas as protegeram do sol ou da chuva, as que ficaram sem ninho porque caiu, as mais exibicionistas e as mais discretas, as mais escuras, as mais clarinhas, …

 

Qualquer observação fugaz, que aos meus olhos era eterna… inundava-me de alegria para enfrentar os dias seguintes sem novas observações.

 

E tê-las na mão!? Quando o meu batimento cardíaco se funde no delas e não consigo sequer distinguir qual o que bate mais forte…

 

As águias de Bonelli, têm estatuto de “Em Perigo” e têm sofrido um acentuado declínio nos últimos anos.

 

Pode ser encontrada desde a região mediterrânica até ao Sudoeste asiático, em pequenas e fragmentadas populações. Na zona da Indonésia e Timor-leste existe uma forma distinta, sendo defendida por uns como uma subespécie e como espécie diferente por outros.

 

Em Portugal, existem cerca de 115 casais. Ao contrário do Nordeste Transmontano (ou mesmo do resto da Europa) onde nidificam exclusivamente em rocha, no Sul de Portugal a população tornou-se arborícola e curiosamente encontra-se em expansão.

 

É a ave de rapina que se reproduz mais cedo na Europa. Podem pôr 1, 2 e raramente 3 ovos (ocorreram 2 casos inéditos em Portugal do nascimento e voo de 3 crias em 2007 na zona do Vale do Guadiana). Os pequeninos quando nascem, assemelham-se a bolinhas brancas de algodão e à medida que crescem, vão adquirindo uma plumagem mais escura. Através da evolução desta plumagem, é possível avaliar a idade das crias.

 

Quando atingem cerca de 65 dias, começam a efectuar os primeiros voos. Permanecem perto do ninho cerca de 2 meses.

Alimentam-se de coelhos, perdizes, pombos e outras aves de médio porte.

 

São fiéis ao território e ao companheiro (por vezes ocorrem divórcios). Podemos observá-las todo o ano.

 

As principais ameaças são os cortes de grandes árvores (devido à sua exigência no que respeita a altura e robustez para suportarem os grandes ninhos), degradação do arvoredo (doenças, incêndios), tricomoníase, linhas eléctricas, disparo e perturbações na época de reprodução.

 

É talvez a ave de rapina mais discreta que conheço… a mais singela e a mais ágil (atendendo ao tamanho).

 

Quase se torna mitológica quando avistada, altura em que os sentimentos ficam ofuscados com tanta beleza.

 

Que sorte a minha, que sorte a minha…

 

Curiosidades: os juvenis, depois de dispersarem, regressam ao local onde nasceram, pelo menos 1 vez na vida.

 

Nota informativa: A autora deste texto não tem filiação clubística nem liga nenhuma ao futebol...nem eu. Só gostamos de águias.

 




publicado por Augusta Clara às 20:00
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E VAI UM... A Arte (Uma visão pessoal) - Adão Cruz

Adão Cruz  A Arte (Uma visão pessoal)

 

(ilustração de José Magalhães)

           

 

Ars, em latim, significa técnica ou habilidade, e seria o processo através do qual o conhecimento é usado para realizar determinadas habilidades. Mas esta definição, apesar de pretender ser abrangente, não satisfaz. Aliás, a Arte não tem definição que nos satisfaça. Por outro lado, tenho muito receio de que as definições nos imobilizem. Todos os que tentaram definir a Arte, através dos séculos, de forma mais superficial ou mais profunda, deixaram sempre, felizmente ou infelizmente, uma falha sináptica no padrão neural da nossa compreensão. O puzzle poderia ser aparentemente perfeito mas havia sempre umas peças estranhas que não encaixavam. Penso que nunca se saberá verdadeiramente o que é a Arte. Talvez a neurobiologia nos dê, mais tarde ou mais cedo, quando a biologia do espírito for uma ciência incontestada, uma aceitável definição, pelo menos de carácter neurofisiológico. Mas tudo isto não deve impedir-nos de pensar e de transmitir a nossa opinião sobre a natureza da Arte. Faço aqui um parêntesis para dizer que gostaria de usar em vez da palavra Arte, a designação de sentimento artístico. A palavra Arte é capaz de remeter para um certo elitismo, criando a ideia de que ela é propriedade do artista e de mais ninguém, enquanto a designação de sentimento artístico permite considerar que este mesmo sentimento existe no observador, e pode ser mais forte e profundo naquele que contempla do que naquele que produz. O sentimento artístico tem uma certa parecença com o místico. É um sentimento quase indefinível, é um estado de hipersensibilidade, um desejo de experimentar ser-se de outra maneira, uma necessidade de sair do não autêntico, um quase sentir a verdade total e o amor universal.

 

Desde as expressões artísticas anteriores ao século XX, passando por todas as correntes artísticas do século XX anteriores à Segunda Guerra Mundial, até aos movimentos artísticos contemporâneos, todas as intervenções procuram apoderar-se e assenhorear-se da Arte como sua definitiva herança ou conquista final. Dentro da Arte moderna, quer tenha sido no Realismo, no Impressionismo, no Simbolismo, no Expressionismo, no Abstraccionismo, no Surrealismo e outros ismos, qualquer artista, abraçando uma qualquer destas formas de expressão, ter-se-á sentido, porventura, na recta final do caminho da arte. O mesmo se dá na Arte Contemporânea, em qualquer dos seus ramos, Pop Art, Minimalismo, Arte conceptual, Performances, Instalações e outros. Muito pequeno sentimento artístico revela quem assim pensa ou quem assim se comporta, desconhecendo que a Arte, como sentimento, é universal, intemporal e transversal ao longo dos séculos. É o mesmo que pensar que a ciência, a despeito da actual magnitude da ciência da evidência, não foi sempre ciência e sempre mãe do conhecimento e do desenvolvimento. A Arte Conceptual, por exemplo, pode usar meios e materiais não directamente relacionados com as artes plásticas, como o vídeo, projectores de slides, fotografia, mas não pode pôr em causa o conceito de Arte, insistindo que é na imaginação, no idealismo, na ideia geradora, no conceito, que a Arte prevalece, de forma exclusiva, sendo a execução apenas um fenómeno dela decorrente. Apesar de eu considerar, como veremos adiante, que a morada da Arte está na ideia e na mente, chegar ao exagero de aceitar a obra como um sub-produto acidental do salto imaginário, é uma forma redutora. Muito provavelmente continuará sempre a haver em qualquer ideia e em qualquer expressão concreta um elemento surpresa, uma originalidade ou um golpe de génio que revolva outras ideias e outros pensamentos. Uma simples mudança de cor ou de forma pode exprimir imediatamente estados emocionais completamente diferentes. A Arte é muito pouco analítica e programável. Por outro lado, dentro da Arte Conceptual e em nome da independência do artista e da sobrevalorização da exclusividade da ideia, proliferam excessos e banalidades, por vezes premiados e aplaudidos como processos de rebeldia e que não passam de frivolidades ao sabor da ordem estabelecida, levando à confusão entre a verdadeira criação e aquilo que se diz novo. Com a agravante de o artista, muitas vezes senhor de mentalidade banal, hiperbolizar a obra com conceitos e considerações de filosofia barata e legendas ridículas, pretensiosamente sábias.

 

Assim sendo, e valendo-nos dos nossos conceitos mais simples, sem grandes filosofias, convido-vos a pensar que a Arte ou o sentimento artístico é, pelo menos parcialmente, a descoisificação das coisas. Um escultor, perante um bloco de pedra que é uma coisa, tenta trabalhar essa coisa de modo a que ela vá perdendo a sua natureza de coisa e vá ganhando progressivamente a natureza de ideia, ideia criadora de uma estrutura pertencente à área da mente. Acabada a escultura, a pedra deixa de existir, mantendo-se apenas como matriz anónima da ideia e do pensamento. O mesmo se pode dizer da pintura. A tela, os pincéis, as tintas são coisas que vão perdendo a sua natureza de coisas, à medida que as coisas trabalhadas se vão transformando em imagens e em vivências, cada vez mais afastadas de apontamentos biográficos e registos, sempre no caminho de uma utopia de liberdade. A cor não deve ser vista como tinta relacionada com as coisas mas deve ser sentida como substância do espaço pictórico. O conceito de que a Arte é a contemplação das relações formais, há muito que perdeu o sentido. Talvez deva ser substituído pela ideia de que uma boa forma não se nota. Um bom perfume é sentido como parte da personalidade de uma mulher e não como um cheiro. A Arte de um decorador não está em chamar a atenção sobre si mesma, mas em dar ao espaço uma sensação de conforto e bem-estar. No entanto, a forma está lá, espontânea, pessoal, inseparável das emoções e dos sentimentos. A Arte é um produto de ideias mas também um veículo de ideias. Quando deixa de ser transparente como veículo de ideias, quando não é mais do que configurações, cores e sons, transforma-se numa técnica de entretenimento superficial dos sentidos. Quando se diz apenas produto de ideias, menosprezando o poder de relação, confina-se ao processo neuronal que a gerou e que pode ser relativamente árido. A Arte é aquilo que vive atrás da aparência das coisas. Para que a obra adquira grandeza, os processos formais devem ser ofuscados pelo seu próprio efeito. Só assim se compreende, dentro de um espírito artístico não radicalista, não equacionista, não academicista, que entendamos o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo, o surrealismo, o Abstraccionismo e a Arte Contemporânea em todas as suas expressões e tendências actuais, como processos de ofuscação das formas pelo seu próprio efeito. A Arte é sempre uma prática de meditação, uma tomada de consciência, a livre expansão de nós mesmos, inteligência viva, diálogo e libertação das forças vitais dentro de uma disciplina ética. Dito de outra maneira, a Arte é sempre impacto, desconcerto de espírito e agente de transcendência das formas físicas e de mudança das formas de ver e pensar.

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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E VAI UM... Eva Onírica e Adão Virtuoso Prestidigitador - José de Brito Guerreiro

 

José de Brito Guerreiro  Eva Onírica e Adão Virtuoso Prestidigitador

 

(ilustração de Adão Cruz) 

 

 

 

Eva sonhou com um cavalo. Adão presenteou-a com Pégaso.

 

Eva sonhou com mais cavalos. Adão ofereceu-lhe o Unicórnio.

 

Eva continuou a sonhar com cavalos. Então Adão tornou-se ele próprio no centauro Quíron, o mais sábio e o mais justo dos centauros, famoso pela sua cultura e ciência, versado em arte e medicina.

 

Logo Quíron e Eva amaram-se, saboreando voluptuosamente maçãs, sem serpente nem pecado.




 

publicado por Augusta Clara às 18:00
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E VAI UM...Tradição e Irracionalidade - Manuel Simões

 

Manuel Simões  Tradição e Irracionalidade

 

(ilustração de José Magalhães)

 

 

 

 

 

Recentemente, para justificar aspectos controversos das festas de Monsaraz, e à semelhança do caso de Barrancos, falou-se de novo das tradições populares e do seu peso na cultura e na identidade. A questão da tradição foi invocada evidentemente pelos defensores das cerimónias sangrentas, o que, desde logo, introduz o choque entre as ideias e os costumes tradicionais, em contraposição com os modos de vida introduzidos numa dada sociedade e que entram em conflito com a chamada tradição.

 

De facto, como todos sabemos, as sociedades que existem no mundo de hoje diferem todas dos tipos tradicionais de ordem social que dominaram o mundo, o que distingue as sociedades modernas das sociedades pré-modernas. Daí que, em meu entender, a defesa intransigente da tradição ancestral para reivindicar um acto que, à partida, escapa ao que se considera racional, conduz inevitavelmente a uma visão estática, inerte, da cultura, por oposição às culturas progressivas, até porque, quer se queira quer não, a mudança social influi sempre no desenvolvimento cultural humano.

 

Deste modo, e embora pareça um paradoxo, a tradição faz-se fazendo, o que significa que os actos acumulados pela sedimentação se tornam irrepetíveis, são sempre novos porque outros, por mais que se pretenda institucionalizar a tradição. Esta avança com a evolução das mentalidades, das técnicas, da formação do gosto. Por exemplo, o banho do dia de S. Bartolomeu, praticado em algumas comunidades com a convicção de que previne a gaguez e o medo, baseia-se nessa convicção para justificar um acto de violência associado a uma boa dose de atitude folclórica. O que acontece é que, quanto mais circunscrita e fechada for a tradição, menos possibilidade tem de evoluir ou de se renovar, apoiando-se por vezes, com orgulho e obstinação acríticos, na mentalidade de um país (ou de uma região) que ainda não deu o salto para a frente e que continua a ter no passado os seus pontos de referência (labirintos da saudade e quejandos).

 

A esta visão do mundo anda associada a mania, cada vez mais generalizada, da recuperação dita histórica da época medieval, inventando gastronomia, cortejos, modelos monárquicos, tudo em nome da tradição, esquecendo-se que os objectos e os actos sociais “se criam” para satisfazer as necessidades de uma determinada organização da sociedade e que a esta ficam irremediavelmente ligados. Repropor hoje, em nome do turismo de massas, um arremedo das ceias medievais ou a exaltação anacrónica e obsoleta do fausto monárquico não me parece uma boa maneira de produzir cultura, sobretudo porque não se inscreve nestas acções o contexto em que se produziam, único modo de oferecer uma possibilidade de análise e de interpretação críticas de tais representações que, ainda por cima, agravam os orçamentos depauperados das autarquias.

 

E, já agora, dito aqui entre parênteses,  quando deixaremos de ter os contos infantis ligados às figuras “tradicionais” dos reis, das princesas, dos duendes, das fadas, etc.? É uma prática quanto a mim perversa, na medida em que se constrói um imaginário infantil que a criança terá mais tarde que remover.Mas voltemos à tradição.

 

Em termos sociológicos, é evidente que se deve evitar o etnocentrismo, isto é, a tendência para julgar as outras culturas segundo os parâmetros do sistema de referência que utilizamos. Mas as sociedades humanas nunca se encontram isoladas e, como já defendeu uma autoridade como Lévi-Strauss, a noção de diversidade cultural não deve ser concebida de maneira estática ou estacionária no tempo, como se cada cultura ou cada sociedade se tivesse desenvolvido no isolamento de todas as outras. É por isso que certa antropologia e sociologia portuguesas se manifestam numa perspectiva que me parece arqueológica, até porque, como tudo na vida, os actos humanos se produzem progredindo, inovando, sem ficarem agarrados à estratificação dos fósseis, o que significa que, deste modo, têm mais possibilidade de fugir à eventual irracionalidade.

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 17:00
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E VAI UM... Roma - Marcos Cruz

Marcos Cruz  Roma

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Passava horas ao espelho. Revia-se nele. Eram ambos incrivelmente superficiais. O reflexo da sua imagem pouco lhe importava, era mesmo pelo espelho que ficava ali, horas e horas, para desespero da namorada, que o tinha como o maior narcisista à superfície da terra. Dizia-lho vezes sem conta, mas ele não se aborrecia. Gostava de ouvir a palavra superfície, fazia-lhe lembrar o espelho. Ela, no seu profundo desespero, procurava mostrar-lhe que havia outros espelhos. "A lua, por exemplo, é um espelho do amor". Ele não fazia caso. Dizia "pois" e continuava a perscrutar a magnífica superficialidade daquele objecto pendurado acima do lavatório. Daí saltava, às vezes, para a televisão, quando dava futebol, mas depressa perdia o interesse no jogo e focava o olhar no ecrã, fazendo análises comparativas entre este e o espelho, que saía sempre vencedor. O mesmo se passava com as janelas, os pratos, as ruas ou o corpo da namorada. Eram subperfícies, cópias imperfeitas do espelho, esse sim a verdadeira expressão formal de Deus. Um dia, ao ter este raciocínio, sentiu-se profundo. Ficou doente. Feliz mas preocupada, a namorada levou-o a um médico, depois a outro, a outro e a outro. Nenhum lhe soube dizer qual era o problema. "Mas ele anda estranho, opaco, senhor doutor! Parece um fantasma, uma sombra do que era", insistia ela, já sem sequer esperar pela resposta. Não tardou muito a que os papéis se invertessem: ela a estudar o espelho e ele a estudá-la a ela. Foi assim durante anos, precisamente os mesmos que ele passara a olhar o espelho. Até que, enjoado de olhar para eles, o espelho se partiu. Cristalizados, ela e ele olharam-se como nunca antes e nunca depois. Num mundo sem espelho, lua ou futebol, foi amor à primeira vista.
 
(este texto do Marcos recebeu, em 2008, o 3º prémio num concurso realizado pelo Museu Nacional da Imprensa, e aparece transcrito num livro editado pelo próprio Museu)

 

Manuel Cruz na Aula Magna

 

 

publicado por Augusta Clara às 16:00
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E VAI UM... A en Joquim Vilà, company, amic, germà - Josep Anton Vidal

 

Josep Anton Vidal  A en Joquim Vilà, company, amic, germà

 (versão em português de Carlos Loures)

 

(ilustração de José Magalhães)

 

 

 

Ce toit tranquille, où marchent des colombes...

[...]

Éloignes-en les prudentes colombes,

les songes vains, les anges curieux!”

 

Paul VALÉRY: Le Cimetière marin

 

 

 

Mentre el dia s’adorm –potser per sempre–

en la llum taciturna de la tarda,

d’aquest teulat tranquil, d’on els coloms s’envolen,

l’aire s’endú les cendres

fredes d’un somni antic.

 

Havíem parlat tant... De tantes coses...

 

Veníem del silenci, de la nit,

de llargues travessies per ermots dessolats,

i dúiem el sarró ple d’esperances,

de paraules inèdites, de somnis no estrenats.

 

Als peus de l’olivera centenària

llegíem els poetes que estimàvem

i parlàvem de tot, hores i hores,

com augurs d’un temps nou, guerrers a la conquesta

de somnis i utopies, armats amb la paraula.

 

Tot era nou i bell en la nostra mirada,

fins els mots i els accents dels versos més antics.

I era tanta la nit,

que amb una espurna ens fèiem una albada.

 

Delerós de camins impossibles,

vas marxar a la impensada...

 

Em van quedar tantes coses per dir-te

i eren tantes les coses que m’havies de dir...!

 

Porto pols de paraules enganxada a la pell,

als nervis, a la sang, al pensament.

Se m’han mort les paraules de no dir-te-les.

 

Tot ha passat. És pols.

Ja ni el record serveix.

 

D’aquest teulat tranquil d’on els coloms s’envolen

s’aixequen somnis nous.

Tu no els veuràs

i potser jo tampoc. Ara, però, la tarda,

amb la claror serena del ponent

ressuscita un moment les paraules perdudes

i em retorna els accents de la vella conversa

barrejats amb els versos d’algun poeta amic...

 

Cerco la teva veu i sento un batec d’ales...

No saps què donaria perquè fossis aquí!

 

_______________

 

Enquanto o dia adormece - talvez para sempre,

no taciturno fulgor do entardecer,

deste telhado tranquilo de onde os pombos levantam voo,

o ar arrasta as cinzas

frias de um sonho antigo.

 

Tínhamos falado tanto... de tantas coisas...

 

Vínhamos do silêncio, da noite...

de longas travessias por desolados ermos

e levávamos o bornal carregado de esperanças,

de palavras inéditas, de sonhos por estrear.

 

Aos pés da oliveira centenária

líamos os poetas que amávamos

e falávamos de tudo, horas e horas,

como augures de um tempo novo, guerreiros à conquista

de sonhos e utopias, armados de palavras.

 

Tudo era novo e belo ao nosso olhar,

até mesmo as palavras e o ritmo dos versos antigos.

E era tanta a noite,

que apenas com uma chispa

inventávamos a alvorada.

 

Ansioso por caminhos impossíveis,

partiste sem avisar.

 

Ficaram-me tantas coisas por dizer-te

e tantas eram as coisas que tinhas para me dizer…

 

Trago a poeira das palavras colada à pele,

aos nervos, ao sangue, ao pensamento.

Morreram-me as palavras por não tas dizer.

Tudo passou. É pó.

Já nem a recordação serve.

 

Deste telhado tranquilo de onde os pombos levantam voo,

esvoaçam sonhos novos. Tu já não os verás,

talvez nem eu… Mas a tarde, agora,

com a serena claridade do poente

ressuscita por momentos as palavras perdidas

e devolve-me o eco da conversa antiga

misturado com os versos de algum poeta querido…

 

Procuro a tua voz e oiço um ruflar de asas…

Não sabes o que daria para que aqui estivesses.

 

 

publicado por Augusta Clara às 15:00
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E VAI UM... A Vizinha.Como se fora um conto - José Magalhães

 

José Magalhães  A Vizinha. Como se fora um conto

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

Qualquer pessoa que esteja no sítio certo, à hora certa, tem a possibilidade de testemunhar uma parte da história de todos nós.

Todas as histórias deveriam começar por “era uma vez…”.

Esta não foge à regra.

 .

Era uma vez uma rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que tinha o nome de uma cidade do Magrebe.

Por lá parávamos, todos os fins de tarde em amena cavaqueira, o Zeca do gás, meu saudoso amigo que partiu cedo na vida e
de quem todos gostávamos, eu e mais um ou outro companheiro, mesmo à porta do João da padaria.

Esta rua, que tinha o nome de uma cidade do Magrebe, era uma rua onde nunca se passava nada. Era uma rua amorfa.

Bem, não totalmente. Durante cinco minutos em cada dia, de segunda a sexta-feira, e sempre ao fim da tarde, alguma coisa mexia. . .

 

Quando passava na rua, a vizinha não deixava ninguém indiferente.

Mexia com os sentidos todos. Todos os cinco sem excepção.

Os olhos lacrimejavam e impediam uma visão perfeita (às vezes).

Os ouvidos deixavam de ouvir tudo o que se passava em redor, concentrando-se no som dos tacões a baterem, ritmados, na calçada.

Deixava de se sentir fosse o que fosse, por via de um formigueiro nas mãos. Os dedos tamborilariam na mesa (se a houvesse) ou ficavam irrequietos nos bolsos.

O rasto de perfume, bloqueava qualquer outro cheiro. Havia até quem voasse atrás dele, mesmo sem dar por isso.

Um sabor a papel de música provocado pela boca seca chegava de imediato.

 

Ao longo do tempo que durou a história que agora conto, e que quase chegou a um ano, na imaginação criada nas mentes dos sempre presentes, provocada pela passagem da vizinha, muitos mataram a sede das suas muitas léguas de isolamento sem bandeira nem hino. Desde exércitos a caravanas, montados em cavalos e camelos ou simplesmente a pé, desde crianças a adolescentes e a adultos, durante o tempo que durava o repicar das Avé Marias no sino da Igreja, o sorriso de felicidade inundava os rostos. A atmosfera de degelo embrutecido, dava lugar ao cantar das águas de Março em pleno anúncio da Primavera. Como que por encanto, despiam a carga negra que as suas vidas lhes vestiam logo pela manhã, e os sonhos e a esperança regressavam como que para sempre.

Deus bafejara a vizinha com a perfeição das formas, e quem a olhava, com o sonho do mel, qual perfume da antiguidade, e remédio para todos os males ou alimento para a felicidade eterna.

A vizinha trabalharia por certo, num local importante. Sempre vestida a rigor, fosse Verão ou Inverno. O cabelo bem arranjado, as unhas das mãos e dos pés (quando se viam) impecavelmente envernizadas. A roupa, bem, a roupa deveria ser de marca, ou então de costureiro.

Era assim que todos a viam.

Ninguém lhe conhecia namorado ou marido, nem qualquer outra coisa do género. Corria a ideia de que vivia sozinha, sem a companhia de cão ou gato.

Não se sabia de onde vinha nem para onde ia. Simplesmente aparecia à porta do 37 bem cedo da manhã, e era por lá que entrava aos fins da tarde.

Quando regressava do seu (suposto) trabalho, a rua parava.

Um dos merceeiros da rua, solteirão praticante e já entrado na idade, aparecia à porta, sorrateiramente. Baixo, forte e razoavelmente simpático, era o comerciante mais antigo que lá havia. Sempre esteve por lá. Ninguém se lembra do tempo em que ele lá não estava. Vivia quase só. Desde a morte da mãe e mais recentemente da irmã, solteira como ele e também já entradota, que assim era. Como companhia, o canídeo de raça cão, branco, a que dera o nome de Berlim.

Lá ao fundo, já na rotunda, o barbeiro, por cujas mãos já todos os habitantes da rua e arredores tinham passado, olhava pelo vidro da barbearia, esquecendo por momentos o seu sonho de criança, que sempre o acompanhara ao longo das horas do dia e da noite, e que era, correr mundo solitariamente numa barcaça. Apesar desse sonho, ou por causa dele, o Vila Verde, assim lhe chamavam por causa da terra onde tinha nascido, era casado, sabia-se, e não tinha descendência.

O outro merceeiro, homem que se considerava importante muito por via de ter um filho letrado, com casa aberta quase na esquina da rua do meio, virava-se de costas, não fosse a sua mulher notar o olhar babado e quase lascivo.

O farmacêutico, filho e neto dos farmacêuticos anteriores, há décadas estabelecidos na rua, anafado e pai de dois pimpolhos rechonchudos, compunha a bata imaculada e olhava de soslaio, esquecendo-se da freguesa que diariamante comprava os supositórios para a tosse.

O Neca alfaiate, que tinha sido cozinheiro na tropa quando estivera em comissão no ultramar, parava de trabalhar, não fosse o corte das calças do sr Antero ficar mal feito.

O Pedro sapateiro, lança um piropo de mau gosto, como de costume.

O empregado do café Avenida (chamava-se assim apesar da estreiteza da rua) dá um estalo com a língua, e o sr engenheiro, que dava aulas (privadas) de matemática e de física e que estava desempregado ia para dois anos, sentado na esplanada suspira e pensa que afinal a vida se não esgota no emprego que não tem.

Enquanto isso, e alheia a tudo, a vizinha continuava com o seu passo pausado, descendo a rua em direcção ao largo.

A D. Aninhas, esposa amantíssima do António carniceiro, faz cara feia à sua passagem.

A criada negra do sr doutor médico, que ele mandara vir das áfricas vai para muitos anos, como era de costume e de bom tom em pessoas da sua categoria e nível social, funga e vira a cara.

A mulher do (importante) merceeiro, olha para ele, desconfiada, esperando uma reacção que ele acaba por não ter.

A empregada da D. Vitória que está divorciada do sr Coronel do Exército (na verdade era só Tenente-Coronel), está a limpar os vidros, empoleirada na janela do segundo andar do número 14, e nem repara em nada.

Dois cães ladram grosso ao sentirem os passos da vizinha. Outro, ao longe, responde.

Dois miúdos, em idade escolar, na pré-adolescência, falam alto um para o outro:

- “João, João, mica!” (o verbo micar, usava-se com frequência na altura, e significa, olhar, mirar, observar…)

A sra professora de música, viúva ia para mais de dez anos do sr Francisco, Chefe das Finanças da altura, e que estava ameaçada de exclusão da carreira docente por não aceitar os regulamentos da avaliação imposta pela sra Ministra, aprecia de longe a vizinha, com conhecimento e nostalgia. Também um dia, ela fora assim!

Impávida e serena, a vizinha passa com o seu pisar calmo e certo. Acostumada aos olhares da populaça, ignora tudo à sua volta, não vê ninguém. Nem se dá ao trabalho de se preocupar com isso. Não olha para ninguém. Não cumprimenta seja quem for.

Chegada a sua casa, mete a chave na fechadura, entra e desaparece até ao dia seguinte.

- “Até amanhã, vizinha!” Pensa cada um para si. No dia seguinte será por certo outro dia de sol.

 .

A vida na rua que tem ao fundo um largo, rotunda como lhe costumam chamar, e que tem o nome de uma cidade do Magrebe, voltava ao rame-rame de sempre. Recomeçavam as conversas, os pensamentos ganhavam novos rumos, e a vida seguia o seu caminho.

Dia após dia, a sua passagem era intimamente esperada, quase que com sofreguidão.

E assim foi durante meses, até ao dia em que a vizinha não veio. Nem de manhã, nem de tarde. E nos dias seguintes também não. Estaria doente? Precisaria de ajuda? A preocupação aumentava a cada passo nas faces dos habitantes da rua.

E ao fim do quarto dia de uma angústia que se via ao longe, veio uma camioneta de mudanças e levou tudo o que havia na casa que tinha o número 37.

Assim, de uma penada. Quase a correr. Num instantinho.

A tristeza e a estupefação ficaram marcadas nas caras de cada um deles.

A vizinha nunca mais foi vista. Nunca mais apareceu.

A rua, que era também um pouco a minha, nunca mais foi a mesma. Ficou ainda mais amorfa e cinzenta do que tinha sido. De longe a longe, nas conversas que sempre surgem, ainda se fala dela, da vizinha, de quem nunca ninguém soube o nome. E essas conversas ainda traduzem nostalgia e tristeza.

Aquelas pessoas só lhes restou a lembrança de um período áureo da vida da rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que ostentava o nome de uma cidade do Magrebe.

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 14:00
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E VAI UM... O nevoeiro desceu - Luís Moreira

 

 Luís Moreira  O nevoeiro desceu

 

(ilustração de José de Magalhães)

 

O nevoeiro desceu, escondeu-se entre os fantasmas que ainda agora estavam ali.

Ganhamos os olhos de uma criança,tudo pode ser tudo, ainda agora estava ao colo de minha mãe e não tinha medo do que ali se escondia. Ouço o vento, e o silêncio, as vozes dos que não têm voz, as penas dos que se lamentam, as almas dos que não têm sossego. Tudo se revela afinal no nevoeiro que se abateu sobre os meus medos, não esconde, mostra, assim os meus sejam os olhos de uma criança.

Envolve tudo num abraço suave mas implacável, não se sabe se é um abraço de protecção se de momentânea fúria, escorre mais do que se abate,sem perder a compostura ali fica, até que pelas mesmas razões ignoradas nos deixa, sem uma explicação, sem um queixume, é como chegar e ir embora seja a sua única natureza.

E tudo e todos voltam à vida, é como um interregno que voltará quando, sem razão, nos vier abraçar.

 

publicado por Carlos Loures às 13:00

editado por Augusta Clara em 07/05/2011 às 21:58
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E VAI UM... Aprendi a viver com o mar - Eva Cruz

Eva Cruz  Aprendi a viver com o mar

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

Aprendi a viver com o Mar

a bramir e a quebrar em mansidão

nas areias da praia

nos rochedos  homens

em maré viva de afronta.

 

Mar é Mar

não contido em cores  verde e azul

Mar é Céu com asas de gaivota

à solta.

 

Noite e dia a ouvir o Mar

nas serenas ondas do pensamento

feito dor e tormento

de não acreditar na paz

           da maresia do fim da tarde.

 

Plangentes cânticos de turbante

de olhos azuis em pele de negro fundo

revolvem o mundo com a música do Mar

           a amainar a maré viva

e cobrem de esperança

os rochedos da afronta.

 

 

publicado por Augusta Clara às 12:00
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E VAI UM... Canela - Ethel Feldman

Ethel Feldman  Canela

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Canela está saudosa das mãos que se encontravam simplesmente para dar um passeio. Agora, os tempos são outros, sua mão direita só encontra a esquerda. Em criança. levantava o braço e havia sempre uma mão a indicar um caminho. Mesmo nos passeios conhecidos da sala para o quarto de dormir. Deitada, antes que o sono fosse senhor e dono do seu corpo, uma mão embalava seus dedos pequenos. Mais tarde, eram mãos agitadas que descobriam com as suas o suor de cada passo.

 

- A menina dança?

 

Timidamente, entregava sua mão direita antes que o abraço rodopiasse na sala. Antes do amor, as mãos davam as mãos prometendo uma aventura sem fim.

 

Hoje, Canela tem suas mãos solitárias. Cansada da saudade já tentou matar a memória de um tempo que nem ela sabe se é mesmo verdade.

 

Francisca almoça todos os dias com ela. Ao meio-dia, pontualmente, Francisca beija a face de Canela

 

- Olá mamã, boa tarde. Estás melhor hoje? Podemos almoçar já? Desculpa mas estou atrasada…

 

Canela esboça um sorriso esperado. Francisca de dia para dia se atrasa cada vez mais. Há-de chegar o dia em que Francisca vai telefonar avisando que já não pode vir tal é o atraso. Até lá Canela faz-lhe o almoço da praxe.

 

- Hoje pareces melhor mamã Até já adivinho um sorriso no teu rosto. O que houve? A dona Felícia morreu?

 

Canela volta a sorrir. Francisca fez da ironia sua fiel companheira

 

- Vá lá mamã, conta-me. Eu te conheço e nunca te vi essa cara

 

- Vi na televisão um anúncio de mãos

 

- ?

 

- Francisca, hoje já se vendem mãos lá na cidade

 

- Oh mamã, são próteses. É de uma empresa de próteses esse anúncio.

 

- Mas já há lojas para quem queira comprar. Lojas de rua. Eu vi no anúncio. Até tem uma loja ao pé da casa da Tia Josefa, na rua de São Paulo quase na esquina da Rua Aprazível.

 

- Mamã, mamã… Cada vez percebo menos a tua fraca cabeça. Olha a massa está muito cozida, o ovo está salgado, o feijão tem chouriço e tu estás farta de saber que não como carne! Gaita, até parece que não me queres cá. E eu ameaço ouvir um sermão do meu chefe e tu te distrais sempre! Cada vez mais! Olha vou-me embora. Quando colocares a cabeça no seu devido lugar apareço. Meu Deus, mamã! O que faço contigo?

 

Canela leva as mãos à cabeça numa tentativa frustrada de encaixar o crânio sem deslocar os olhos. Num sorriso, agora patético, desculpa-se da indelicadeza da sua distracção.

 

Com um beijo irritado, Francisca apressa a despedida.

 

Canela levanta a mesa ritmadamente. Com mãos firmes lava a louça, arruma a cozinha, belisca o ovo salgado, o chouriço proibido, em vez de deitar a comida da filha para o lixo.

 

Canela não sabe bem porquê mas está quase feliz. Despe a roupa suada e como sempre prepara-se para a sesta. Todos os dias sempre dias tão parecidos que podia jurar que eram sempre os mesmos de todos os dias.

 

Deitada na cama entrega seu corpo ao descanso. O anúncio da TV visita o desejo. Canela não dorme, mas sonha.

 

- E se eu fosse ver essas mãos? Um arrepio percorre seu corpo ansioso.

 

Apressadamente abre as gavetas de uma cómoda mofada. Sem fôlego procura seu uniforme de enfermeira-chefe.

 

- Será que preciso do chapéu? E do casaco azul? Mas está tanto calor! Mas não me esqueço dos óculos, ah isso não! Se Francisca me visse agora? Falta meu baton vermelho…

 

Canela está pronta! Um ameaço do que foi outrora. Delicadamente, pacientemente atravessa a rua. Acena para um táxi e pede:

 

- Leve-me à Rua de São Paulo na esquina com a Rua Aprazível, por favor.

 

Canela disfarça seu nervosismo sorrindo, falando do tempo, que lhe tem passado ao lado há tantos anos.

 

A cidade fica distante, bem uma hora de caminho - o tempo de uma vida, de um ameaço de morte. O tempo de um coração agora acelerado. No caminho adormece embalada pelos buracos da estrada. Uma mão, nem bonita nem feia, convida Canela. Aponta o mar que contorna o passeio, agitada se esconde do sol, marota dança em cada esquina, Canela sabe agora que está mesmo feliz.

 

- Senhora? Dona? Acorde que chegámos!

 

Envergonhada essa mulher de mãos solitárias desculpa-se mais uma vez da sua distracção. Afinal deixou-se dormir, não impediu o sonho no banco do carro público.

 

Bem em frente, no outro lado da rua uma vitrine repleta de mãos! Amarelas, azuis, cor da pele, com luvas rendadas, outras rugas. Mãos, mãos, mãos!

 

Num passo apressado atravessa a rua. Em frente da loja para. Respira, inspira. Sem sucesso tenta o encontro do eixo. Leva as mãos à cabeça, desloca o pescoço num gesto firme e rápido para a direita e esquerda. Por fim o crânio encaixa, os olhos focam e a face encontra a paz desejada. Abre uma porta elegante num gesto fresco, feliz de quem sempre soube como é bom existir.

 

Pernas, pés, braços e .. Mãos! Uma loja que promete um membro a quem o tem amputado.

 

Canela encontra sem dificuldade o que precisa. Bem no centro de uma enorme sala um cilindro de acrílico expõe mãos. De todos os tipos, para todos os gostos. Se você nasceu para a música e por desgraça teve a mão amputada aqui encontra a mão substituta que trará de novo o som da sua alma.

 

Canela decidida pergunta ao jovem vestido com o logótipo da marca:

 

- Boa tarde procuro uma mão, não importa o tamanho.

 

- Só vendemos com receita.

 

- Não vê que sou enfermeira? Venho de uma urgência hospitalar.

 

- É necessário o tamanho entende? Não podemos vender uma mão de um anão para ser colocada num terminal de um gigante! E depois há os velhos - esses não se adaptam a uma mão de um adolescente. O inverso continua sendo verdadeiro. E as nossas mãos além do mais são articuladas!

 

- Ah, sim? Para quê a compatibilidade se elas já se mexem? Não basta?

 

- Percebo que não está familiarizada. Uma mão de um velho nervoso fará muito mal a um jovem estudante. Todas nossas mãos são feitas de varias memórias. Assim o ritmo varia. É complexo. Isto não é um hipermercado.

 

- Sou enfermeira. Sei do que falo. Tenho aqui a receita. Basta-me uma mão, seja qual for. A única preferência é que saiba dar um bom aperto de mão. O paciente é caloroso. Tinha uma mão que em tudo tocava. Um tacto apurado. Uma vontade de ser..

 

- Vou perguntar ao meu gerente, senhora?

 

- Canela.

 

- Um momento, por favor.

 

O jovem volta as costas, vira à esquerda e se esconde num canto onde a luz deixa de existir. Cansado se agacha e chora baixinho. Miguel já não suporta tantos pedidos sem nexo. Diariamente aparecem dezenas deles ,supostos bombeiros, enfermeiros ou médicos. Ninguém quer ver o catálogo. Ninguém pede uma mão definida. Que epidemia é esta? O gerente não reclama. Sorri sempre e diz:

 

- Faz de conta que percebeste e vende! É para isso que estás aqui!

 

- Mas e a ética?

 

- A nossa, é satisfazer o cliente.

 

- E se as receitas forem falsas?

 

- Não sou polícia Miguel. E que mal há em vender uma mão a quem quiser comprar? És dono da mão alheia?

 

Miguel desistiu de entender. Desde há um tempo que sua mão direita sofre de dormência. Foi perdendo a força lentamente. Nada em casa restitui a alegria que tinha. À noite, quando adormece ,sonha com os membros desmembrados. Miguel quer fugir, queimar todos os catálogos que não explicam que mãos ele deve vender.

 

Mais calmo regressa ao centro da sala.

 

- Senhora Canela...

 

- Diga...

 

- Quer ver o nosso catálogo?

 

- Jovem, preste atenção: a mão que preciso já lhe expliquei. Se é grande ou pequena, jovem ou velha, pele amarela ou negra não me interessa. Basta simplesmente saber dar um aperto de mão...

 

Miguel ainda ameaça um ‘mas’ enquanto Canela lhe sorri carinhosamente. Abre o expositor, tira uma mão de um rosa desmaiado – sem vida.

 

Canela se assusta – que mão era aquela? Com tantas outras coloridas e ele lhe oferece a mão mais morta da loja!

 

Miguel segura então o que deveria ser o cotovelo e num gesto educado cumprimenta Canela.

 

- Muito prazer…

 

Um arrepio percorre o dorso da enfermeira-chefe. A memória de um calor tantas vezes vivido vai acordando os sentidos. Mamilos erectos, a boca alagada, um estremecer esquecido no baixo ventre e de repente um grito:

 

- FICO COM ESTA!

 

- Vou embrulha-la então…

 

- Não, não é preciso eu levo assim mesmo. Vou pagar e já volto. Não fuja daqui Miguel.

 

O jovem cansado sorri e promete que dali não sairá nunca. Os jovens são mesmo dramáticos.

 

Canela volta do caixa ansiosa. Pega na mão que não sabe se é Maria ou João. Discretamente a agarra em sua mão. E de novo a vida volta a ter sentido.

 

De mãos dadas sai da loja. Com a mão esquerda que está livre chama um táxi. Com a direita vive.

 

Perto de chegar a casa pede ao táxi que pare. Está um lindo pôr-do-sol e Canela quer mostrar à mão amiga a paisagem na praia. De mãos dadas passeia na areia, arrojada, mergulha na água salgada - sempre com a mão direita bem apertada à mão companheira.

 

- Hoje é noite de lua cheia, amiga. Vou te mostrar como é bonita a vida longe do expositor.

 

No caminho para casa a enfermeira-chefe joga fora o chapéu. Mais leve despe o casaco. E se tirasse a roupa? Despida do uniforme que pautou sua vida? Não seria isso a liberdade?

 

Canela tem vontade mas não se atreve. Deixa-se estar com a saia branca mofada. Quando chega à casa leva a mão companheira ao peito e pede carinhosamente que a ajude a despir-se. Sem vergonha Canela explica que na sua idade o corpo não tem idade. A mão amiga então abre botão a botão da camisa. Devagar empurra a gola - o busto de Canela descobre-se. Sem cerimonia a mão – sempre agarrada à mão de Canela – acaricia-lhe a nuca. Como se conhecesse a viagem desce aos seios da mulher sem idade. Mamilos erectos, baixo ventre molhado. Canela mulher. Canela a folgar de prazer. Chega a noite e Canela se deita. Na sua mão direita uma mão por companheira. Não interessa se é Maria ou João. Certamente importa que sabe dar um aperto de mão.

 

Canela, minha amiga, me diga o que vai fazer quando a mão sentir a falta do braço para te dar um abraço?

 

publicado por Augusta Clara às 10:00
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E VAI UM... Escrever - António Sales

António Sales Escrever

 

(ilustração de José de Magalhães)

 

Porque escrevo?

 

Não sei da mesma maneira que não sei porque fui sempre um amante da leitura e de jovem comecei a minha biblioteca. Em minha casa não existia um livro. Bom, existia a bíblia, missais de minha mãe, John Chauffeur Russo, Sou Maria, Saber Viver e o Coliseu Infantil. Felizmente ainda conservo todos.

 

Sem grandes delongas direi simplesmente que escrevo porque me apetece. Muitas vezes estou com a caixa craniana avariada e vai disto, ponho-me a escrever. É mais barato que ir ao médico e não tem despesa de farmácia para medicamentos. Dá-me prazer, digo, criar vidas ou tão prosaicamente desabafar comigo mesmo através da escrita que é uma espécie de confissão. Como jamais admiti sequer poder-me confessar ao padre, provavelmente mais por uma questão de fé que de pudor, prefiro confessar-me à escrita, ou seja, a um outro eu que não a mim próprio. Muito embora pareça que escrevemos para nós, isso não é verdade porque fazemo-lo para um outro personagem em abstracto.

 

Escrever é assim uma espécie de loucura de um sujeito criador de universos onde existe sem existir, ama sem amar, sofre sem sofrer, ataca sem matar. Escrever é uma rota que isola mente e espírito transportando-os a um planeta imaginário suficientemente absorvente para eu me isolar do planeta real. Mas também é recordar, registar a vida em que participo com outros colegas interpretes desta gigantesca comédia humana (vai um chavão!) Escrever é um acto de inconfessáveis intimidades e reflexões que normalmente conduzem quem escreve ao desespero de transmitir, através dos olhos críticos da alma, as tristezas do mundo.

 

Quando escrevo salto o meu rio sem ponte para a outra margem. Aí me deixo ficar com um sorriso nos olhos a perscrutarem a pequenez de tudo quanto existe nesta margem onde realmente existo.

 

Nessa outra está o meu sol e a minha lua que iluminam uma ilha de solidão onde me divirto escrevendo.

 

Luís Represas canta Florbela Espanca

publicado por Augusta Clara às 09:00
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