Sábado, 16 de Julho de 2011

Portugal, a União Europeia e a Democracia nas malhas dos ratings - IV

Júlio Marques Mota

 

Compreende-se que as agências existam, existam e assumidas como serviço de interesse geral no caso das empresas nacionais, devendo então elas ser públicas, enquanto para Estados soberanos elas justificam-se também, mas devem estar na órbita das instituições internacionais, sob a égide das Organizações de Bretton Woods. Neste sentido, veja-se a posição de Luc Chardonneret du Ponant:

 

Os ratings não são serviços financeiros como os outros nem são produtos de consumo de massa; eles participam na “fides”, isto é, na confiança. É por isso que se fala de moeda fiduciária para descrever o sistema monetário moderno que assenta essencialmente no grau de confiança dos actores relativamente ao seu sistema financeiro, bancos comerciais, e banco central incluído. A qualidade é uma exigência sine qua none da perenidade das agências. Não uma qualidade caracterizada pelo número de horas de formação que os analistas recebem anualmente.

 

É ainda necessário que estas formações sejam boas, pertinentes, úteis, exploráveis, inteligentes. E, depois, que dizer do recrutamento. Na maior parte dos casos, são os analistas de melhor posição nas agências que recrutam os seus colaboradores mais jovens: nada de mais normal, dir-se-á. É sem dúvida verdadeiro, mas as organizações abundam de casos de conflitos e ambições mais ou menos sãs que levam certos analistas mais velhos a criarem obstáculos à partilha de conhecimentos e de know how em relação aos recém-chegados mais novos. Um risco consiste em não delimitar do interior as reais necessidades das agências, tentadas a contratar mais facilmente executantes capazes de absorver enormes volumes de produção de notações, em vez de espíritos curiosos, cultivados e bem formados de base, capazes de navegar sem embaraços tanto no labirinto da macroeconomia internacional como entre as dificuldades da economia política, ao mesmo tempo capazes de evitar os alçapões da micro análise.

 

Os ratings não são commodities, nem produtos de grande
consumo, se bem que se tenham tornado uma língua viva (calão, talvez) muito
largamente praticada por dezenas de milhares de investidores. Se, por
conseguinte, a qualidade deve permanecer o privilégio da notação financeira,
então os analistas não devem estar permanentemente “com a mão na massa”, mas
pelo contrário devem dispor dos meios para se distanciarem, irem de férias;
devem ter tempo para ler, ouvir os prémios Nobel falar, voltarem à
Universidade, participarem em revistas da literatura especializada, académica,
e profissional; devem passar menos tempo nos aeroportos e mais tempo em
reflexão individual e colectiva; não se devem deixar seduzir pelo pensamento
único nem pelos discursos demasiado orientados pelas instâncias de decisão. É assim,
a este preço, que serão autenticamente “os guardas” dos mercados financeiros,
quer dentro deles quer fora deles.

 

A actividade de produção de ratings tem basicamente a
ver com a prestação de um serviço público. A vigilância dos mercados do crédito
constitui em si um compartimento dos mecanismos de regulação da finança em
obrigações. A auto-regulação dos mercados mostrou os seus limites. O regresso
dos Estados, que não se deixará de realizar, até para se dar a saída da crise
actual, deverá sem dúvida ser acompanhado da exigência de reconsiderar o papel
das agências de notação. Nesta perspectiva, sair do beco sem saída accionista que
coloca os analistas numa situação incómoda e de esquizofrenia permanente, tanto
eles são apanhados entre a exigência de qualidade e a corrida à rentabilidade,
levar-nos -á fatalmente a fazer a escolha — que não tem nada de Corneille — da
qualidade desta vigilância em detrimento da sua rentabilidade.

 

Os accionistas privados “da trilogia” toda-poderosa de hoje não estão em condições de
sacrificar as suas margens para o bem público; não é o seu papel, nem é o
mandato que lhes foi dado pelos mercados e, no final, ser-lhes imposto seria
injustificável. Além disso, não se trata aqui de querer nacionalizar as
agências de notação existentes: o mercado tem necessidade delas, hoje mais que
nunca; mas está também fora de questão deixarmos que elas dominem esta actividade
sem qualquer contrapeso nem protecções. Por conseguinte, é tempo de ver emergir
uma agência de notação pública: é necessário entender por esta proposta uma
agência de capitais públicos, não uma agência povoada de funcionários.

O agente público é um dos raros agentes económicos de quem se espera que
não deva ter taxas de lucro exorbitantes e que não tenha uma exigência
excessiva em relação à remuneração dos fundos próprios investidos, sobretudo
quando se trata de assumir a responsabilidade da gestão dos bens colectivos ou
as funções de governança pública. Dito isto, os Estados são entidades muito
mais marcadas ideológica e politicamente, sendo insuficientemente independentes
dos problemas económicos. Por consequentes, um ou vários Estados não poderão
ser os patrocinadores eficazes de uma nova agência de notação constituída por
capitais públicos.

 

Os mercados têm necessidade de garantias de autonomia e de
independência, bem como de suficientes garantias susceptíveis de conter ao
máximo as presunções de conflitos de interesses. A nova agência pública de
notação deverá necessariamente ser supranacional ou em todo caso detida
inteiramente por capitais públicos supranacionais. Para que os actores globais se
sintam todos eles empenhados, como partes activos e interessadas no processo de
reformas quanto à vigilância dos mercados obrigacionistas, então um actor de
referência emerge como o accionista perfeito: seria idealmente o Banco Mundial,
nomeadamente o seu braço financeiro dirigido para o sector privado, a Sociedade
Financeira Internacional (SFI). Já bem enraizados nas actividades de
financiamento, de desenvolvimento e de subvenção, essencialmente no seio dos
países emergentes, o Banco Mundial e a SFI estão desde há muito tempo bastante
empenhadas nas questões financeiras globais e têm-se defrontado também desde há
muito tempo com as crises proteiformes que agitam o planeta de maneira mais
intensa e mais recorrente desde as duas décadas de desregulação que se
sucederam à queda do Muro de Berlim.

 

Poder-se-ia imaginar uma agência de notação totalmente controlada pela SFI enquanto
accionista, mas funcionando sobre um regime próximo do sector privado. A sua
sede seria instalada em cheio no coração da City de Londres e poderia apoiar-se
sobre a malha territorial muito extensa do Banco Mundial no mundo.
Naturalmente, uma muralha da China separaria permanentemente as actividades
financeiras da SFI das suas actividades de notação, sob o controlo de uma
equipa de inspectores do Banco Mundial. Sem a pressão da rentabilidade louca,
os analistas desta nova agência poderiam ligar-se a 10 à 15 créditos por analista,
ou seja, em média duas ou mesmo três vezes menos que nas agências do sector
privado.

 

Os orçamentos de formação e de recrutamento seriam comparativamente mais importantes, para assegurar, por um lado, a manutenção de um elevado grau de competência, o enriquecimento em capital humano, e, por outro lado, a diversidade dos talentos, favorecendo contratações que obedeceriam mais às necessidades estruturais dos mercados em matéria de análise do que aos constrangimentos de produção de notação a qualquer preço, ou mesmo aos seus managers.

O objectivo principal em matéria de gestão dos recursos humanos seria a formação de multi-especialistas, não dos especialistas incapazes de aprofundar assuntos técnicos em profundidade nem de analistas hiper-especializados incapazes de se distanciarem, de ganharem a distância para tornar o mundo económico mais compreensível aos investidores que lhes delegaram esta actividade de vigilância. As remunerações dos analistas poderão permanecer competitivas em relação às dos concorrentes privados, dado que a variável de ajustamento será a margem de lucro, por definição mais fraca, tanto quanto o accionista público privilegiará a qualidade da produção em relação à manutenção das suas margens.

 

A notação financeira é uma profissão complexa e rica, que se apoia em décadas de recolha de dados e numa muito longa experiência dos analistas. Num primeiro tempo, a agência pública será obrigada a tomar sob a sua responsabilidade as linhas de actividades mais facilmente replicáveis, a notação dos títulos soberanos e as instituições financeiras bem como as grandes empresas. Será difícil encarar um início com grandes resultados imediatos no mundo muito complexo da titularização. Isto suporá previamente a acumulação de uma experiência mais longa e mais rica em notação fundamental (a das entidades fora da titularização), antes de passar a fronteira dos financiamentos estruturados, onde as notas são mais quantitativas, mais modelizadas e mais mecânicas.

 

É provável que em relação às consequências da crise, numerosos especialistas da análise de crédito, que têm muita dificuldade em encontrar sentido na realização diária das suas actividades e das suas competências técnicas e humanas, tenham assim uma oportunidade única de poderem juntar o útil ao agradável, de praticarem a sua profissão sem pressão excessiva, de continuarem a progredir, a aprender, a descobrir, sem se estarem a comprometer na lógica desumanizante da super produtividade.

 

É necessário admitir que um tal projecto encontrará ecos favoráveis junto da maior parte dos actores em causa, sem dúvida porque responde às expectativas comuns ainda latentes, mas que começam lentamente a tornarem-se mais manifestas: em economia, como em qualquer outra forma de interacções humanas, os actores têm necessidade de sentido, ou seja, de uma direcção claramente identificada e de um mínimo de significado simbólico. As agências de notação privadas, emparedadas permanentemente entre o lucro que é necessário efectivamente servir aos seus accionistas e a necessidade de assumir a qualidade analítica, dificilmente chegam a conciliar estes objectivos contraditórios.

 

Pelo meio, estão os analistas: fazem o seu melhor, enquanto todos esperam que eles façam melhor. Se a colectividade pública mundial pode ajudá-los a prestar-nos digna e eficazmente este serviço, então porque não o fazermos? Um ponto de vista nada diferente é apresentado por Norbert Gaillard, quando nos diz:

 

Como desde há já algum tempo o defendi na minha obra recente sobre as agências de notação, seria necessário eliminar as referências aos ratings em certos quadros regulamentares financeiros para forçar os investidores e os banqueiros a assumirem as suas responsabilidades e a desenvolverem os seus próprios departamentos de risco de crédito (corporate e soberano).

 

Todos estes têm deixado em demasia as suas estratégias de investimento assentar em notações feita pelas agências. É tipicamente um fenómeno de externalização do diagnóstico de risco de crédito, que atingiu o seu apogeu no momento em que as regras de Basileia II foram postas em prática, em meados dos anos 2000. Hoje, todo este sistema mostrou claramente os seus limites: só os pareceres das três grandes agências contam para os mercados de capitais internacionais e não somente para o americano, como era o caso até aos anos 80.

 

Uma outra pista, do meu ponto de vista, seria confiar ao FMI a notação soberana
do conjunto dos países do planeta. O Fundo possui um grande número de dados de
primeira mão sobre os países, tem uma capacidade de avaliação inegável, tem os seus
economistas excelentes e não haveria conflitos de interesse ligados ao sistema
do emitente-pagador (recordamos que as agências de notação são remuneradas
pelos emitentes de títulos que estão a classificar, a atribuir a notação, por
outro lado). Seria necessário contudo velar para que os accionistas do FMI, ou
seja os Estados, não interfiram no processo de notação, porque neste caso uma
outra forma de conflitos de interesse emergiria.

 

Por uma via ou outra, isto seria retomar de novo o caminho já velho e para muita gente já esquecido de Bretton Woods. Os neoliberais não o quiseram, aliás desmontaram tão laboriosamente o trabalho que em Bretton Woods foi feito como desmontaram os mecanismos de protecção dos tempos de Roosevelt. Desembocou-se numa crise medonha, nos Estados Unidos e na Europa, num lado manifestou-se através da crise dita de subprimes e, no outro, manifestou-se através da crise dita da dívida soberana.

 

Haver agências privadas de rating para dívida soberana é reduzir o Estado a uma empresa, é reduzir o presente e o futuro duma nação ao curto-termismo das bolsas, é considerar que o Estado pode ser visto, analisado e notado como se de uma empresa privada se tratasse, é reduzir a macroeconomia simplesmente a nada e, quando assim é, é então fazer desaparecer o Estado como ecrã de harmonização dos interesses nacionais, como regulador dos mercados, porque é o agente central da política económica que pela via neoliberal deixa de o ser, como os neoliberais assim bem o deixam à evidência, chamem-se eles Passos Coelho, José Luís Zapatero, Sarkozy, Cameron ou outros.

 

A concluir este texto, debrucemo-nos um pouco mais sobre as agências de ratings
que são o equivalente a uma arquitectura global de risco de crédito.

Combinando a experiência empírica com a lógica
económica, financeira e jurídica, estas constroem e constituem uma malha dinâmica
de ratings sobre as instituições de crédito, a nível nacional,
a nível de governos e de organizações de crédito bilaterais: governos nacionais,
regionais, municipais, locais, bancos públicos e privados,
seguradoras, grandes empresas e projectos e um cada vez mais complexo conjunto de
operações de desenvolvimento de transacções sobre produtos financeiros estruturados.
Como um puzzle, como uma peça do puzzle, cada notação faz parte de um quadro de
análise mais vasto. Como uma mercadoria, o risco é negociado, manipulado, ampliado
e mitigado. A engenharia de risco tornou-se um grande negócio, com os reguladores,
muitas vezes a lutarem para se manterem a par da evolução da indústria.

 

Pela sua própria natureza, os ratings soberanos são um alicerce fundamental
nesta arquitectura, reflectindo a natureza bem específica da autoridade soberana
para emitir moeda, impor impostos, regular, expropriar e gerir os níveis salariais.
Normalmente, um governo soberano está no máximo das classificações dentro da sua
jurisdição, em que os rendimentos dos seus títulos servem como a “taxa de rentabilidade
de risco zero”, taxa de referência contra a qual as taxas de rentabilidade dos outros
títulos nacionais são comparadas. Alguns emitentes adquirem solvabilidade equivalente
à do crédito soberano, através de garantias como seguros de crédito e, ao fazê-lo,
diluem a especificidade do crédito soberano. Outros protegem-se eles próprios das
intervenções soberanas, mantendo operações ou retendo as receitas de exportação
no exterior e, ao fazê-lo, quebram o tecto “soberano”.

 

A credibilidade de crédito de cada país soberano, por sua vez, é medida em relação aos créditos soberanos considerados como os mais solváveis, os de menor risco, emissores de triplo A e dentre destes o mais proeminente é o governo dos EUA, cujos títulos são geralmente considerados como os títulos de referência, o benchmark, livres de risco global. As mudanças nos ratings soberanos têm normalmente implicações de longo alcance.

 

Os ratings soberanos foram postos à prova em 1997-2002. A crise asiática, em 1997, expôs as deficiências existentes quanto ao tratamento da informação e notação baseada esta em classificações determinadas exclusivamente através dos “fundamentos macroeconómicos” e as agências de notação, as agências de rating, sublinharam então a questão da contingência na responsabilidade legal.

 

A crise russa, em 1998, desafiou e reforçou os tradicionais pontos de vista sobre a relativa probabilidade de incumprimento em moeda local versus moeda estrangeira. A situação de incumprimento do Paquistão em 1999, numa emissão de títulos em euros, eurobonds, assinalou uma nova posição do sector oficial para impor a partilha dos custos pelos titulares das obrigações e sublinhou a necessidade de vigilância, instrumento a instrumento financeiro, em cenários de incumprimento selectivo. A troca de títulos pelo Paquistão e uma vez pelo Equador, em 2000, geraram uma procura de avaliação de solvabilidade de crédito, a notação sobre a qualidade do crédito emitido, que foi indicativa do papel que as agências de rating vieram a ocupar mais tarde como fornecedores imparciais de informação de crédito em situações de reestruturação da dívida soberana.


A crise da Argentina em 2001-2002 resultou na maior situação de incumprimento soberano a nível internacional de toda a história. E quando o Uruguai caiu numa situação de crise financeira em 2002, as classificações das agências, mais uma vez apareceram tarde demais, sublinhando-se por aí as debilidades do sistema de notação do risco de crédito que se mantinham bem presentes.

publicado por siuljeronimo às 20:00

editado por Luis Moreira em 14/07/2011 às 18:05
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