Domingo, 16 de Maio de 2010

Querida mamã

Ensaio de Etnologia da Infância

Raúl Iturra

1. Nascimento

Sou teu. Tiveste-me no teu corpo. Sou teu. Desde dentro de ti, ouvia. Ouvia e sentia. Ouvia as palavras, os murmúrios, as conversas. A água que me resguardava, regurgitava o som que nos meus ouvidos ficava. Uma música. Ouvia uma música. Não tinha voz. Era um som que me parava. E eu não mexia. Dedilhado. Sereno. E sabia que havia uma voz que sempre ouvia e que em mim ficava. Sempre. Sou teu. Até pelo som dessa voz que depois soube saber que era tua: Divertida. O rir, cristalina de brincadeiras sem palavras. E davas-me o teu peito que eu sugava, contas. Como se depois nada mais puder haver. E deixava a fonte seca e o espaço aos berros por pedir mais. E, sabias, mais não se podia. Limitavas. Como sabias. Como os teus te tinham dito. Agasalhavas o meu corpo como um pacote, com os braços dentro, bem fechado e bem envolvido. Uma mão saía sempre pelo pacote fora, e dentro a voltavas. Com uma calma cristalina. É o que contavas e os teus pais testemunhavam. E cantavas Mãe querida, a minha coitada mãe. Essa música que até hoje, me faz sentir à mãe coitada se eu não dou o que a mãe quer. E a mãe sempre quer. Sempre quis. Sempre vai querer. Até Andrea Chennier cantar, mais tarde, muitos séculos mais tarde. Quando a casa arder. Essa carinhosa coitada mãe que me trocava. Trocava por ideias, por melhor fazer, por carinho ao pai, por gracinhas feitas contadas às outras mães. Em concorrência. Para saber qual era o filho melhor, o mais bonito, o mais são, as mais silenciosas as noites. O mais comilão dos comilões. O melhor abastecido de roupas, tricotadas ou adquiridas. E uma mão andava sempre pela minha cabeça, pelo meu cabelo, mão que tirava a minha mão do meu corpo, quando bebe, esfregava a mão nos meus genitais. E a mãe ria e dizia, não, ainda não. Diz. A mãe diz, eu não me lembro. Mas, a mãe é a memória que me traz à memória que eu fazia e não tinha palavras para armazenar na lembrança. Só sentia. O riso, dedilhava o sentir. E até agora fica esse riso quando eu ando a dedilhar. Um riso que procurei igual para dedilhar bem a prazer e com ternura. A ternura que o ventre, o peito, a palmada na mão, a mão no cabelo, a troca, deixaram em mim. Sem um soco no corpo, só beijos, muitos beijos, tantos, que beijos acumulei para dar até para além de Andrea Chennier. Que ficam até o dia que mais ninguém que queira beijar o me deixe beijar. A memória desse amor substitua a materialidade que um dia para mim não haverá. Fizeste-me um tesouro de ternura, incapaz de confrontar a vida não ternurenta, competitiva. Só me ensinaste a triunfar em terreno certo, o terreno da mulher à qual eu pertencia.

2. Renascimento

Até que me transferiste a outra, essa que aperfeiçoou as letras, ideias e números que me tinhas dito e que eu não sabia que aprendia. Para poder batalhar com a vida, para comunicar com a vida. Tinhas as matemáticas e as línguas que a academia te entregara em recompensa aos teus saberes. Mais um saber para mim. Saber que se sabe se esforçar o candidato. E candidato fui. Em casa. Com essa outra mulher que me apaparicava nos cadernos, nos livros, nas histórias. E que a mãe depois perguntava. E aprovava ou não. Mãe, porquê? Filho escravo da mulher? Por seres escrava dos homens. Do teu, como antes do teu pai? Escrava gentil e sedutora que me ensinou que a mulher serve sem se queixar, penteada e vestida ao seu homem? Que homem é só um? E que era desejável que mulher para o homem só fosse um? Ainda hoje, época das uniões sucessivas e celibatárias a dois em casas diferentes em dias diferentes? Que mais mulheres podem haver se são as amigas da mãe de visita em casa? Mães, porquê todas as outras eram pegas? E corrias com elas? E essa questão que me iniciou na vida reprodutiva: filho, tem olheiras, por acaso tem maus costumes? E eu não entendia, não tinha os conceitos entre terço e terço, entre catequeses e catequeses, entre confissão e confissão, entre horror e temor ao pecado e ao inferno, entre essa piedade barroca ibérica de cruzada medieval e a liberalidade que por aí andava solta na tua própria alma quando ensinavas a tricotar as mulheres ditas pobres, feitas pobres por ti e os teus. Com arranjo de flores e tintas limpas nos quartos das suas casas. Maus hábitos. Procurei, conheci, adorei. Guardei para ser a dois depois. E as mulheres, ensinaste-me, eram senhoras ou pegas, não havia outras. As senhoras, para namorar e casar, as prostitutas para deitar com elas fora de casa. E a ternura ficou conflituosa. O mundo era mais complexo que de bebés inteligentes, crianças sábias, amigos a brincar, raparigas a respeitar e ignorar. Para amar, tinha que ser mulher e senhora ritual, intelectual, graduada. Bonita, penteada, perfumada, servir silencioso. Como o teu. Sem mexer da cadeira de baloiço. A coordenar a casa. Ou a coordenar as casas caso não houver outra possibilidade que a entreajuda. Mãe, querias que eu estudasse. Estudava. Mas aprendia a fazer chantagem: eu leio se a Lúcia vem a casa. E a Lúcia ia para trás das cortinas e era por mim agarrada, por mim a depositar os milhões de beijos guardados na memória da infância. E a Lúcia ia e eu aprendia. Mil coisas. Da cabeça e do corpo. Até a Lúcia desaparecer. E um dia aparecer a senhora que sugou a minha alma até agora. E eu, com medo de não saber se era senhora ou não para a mãe. E era senhora, e mais do que senhora. Tão senhora, que passada a paixão só podia cumprir a promessa que, dizes mãe, os homens fazem às mulheres quando distem amá-las. Só a essa. A mulher passa a ser o fruto proibido a seguir, só fica essa tridentina mulher que nos faz adultos, ou torna ser a mãe que quer saber se o filho tem maus costumes. Mãe, fazes ao filho para ser o filho da mulher que escolhes para ele amar até a morte. Porquê, mãe, que sabias tu da liberdade feminina, da opção feminina, da autonomia feminina? Não era a mulher a serva do maridos, como Sara de Jacob, como Maria de José e, ainda, Maria de Jesus o seu filho mítico, Raquel de Abraham? E a Judite, servidora do seu povo? E a tua Teresa de Ávila, sabia para o seu povo? E a Madame Curie, companheira sobrevivente do sábio do radium? Sabia ela também? E as mulheres tuas descendentes, da tua geração descendente, empresas autónomas que partilham a vida com o seu hoje companheiro? Como ias tu explicar o que nunca soubeste nem ver nem fazer? Mãe, porque recuperar a força autónoma quando o pai já não pode mexer? Como sobrevives ao teu objectivo de vida? Ao teu definido objectivo de vida?. Ao teu público objectivo de vida? E querias que nos homens, com senhoras senhoras. Com senhoras de genealogias. Com senhoras graduadas. Querias que tivéssemos senhoras autónomas como as nossas silenciosas escravas?

3. Identidade

Perdemos, mãe. A frase existe de que atrás do César, está a mulher do César. Para dar apoio? Para instruir? Para proteger? Ou para mandar? Para mandar esse perigoso ser que é o masculino. Mesmo, as mulheres masculinas que hoje têm sido feitas pela corrida económica. Quando há tempo só para se ver entre horário e horário de trabalho, quando a ternura é feita no cálculo que quem ganha mais, quem toma mais conta da filharada, quem faz mais os deveres de casa, quem anda sempre com a mulher entre os amigos do homem. Mãe, sabes que estamos numa época de transição? E, por enquanto, os homens devemos viver sós e sem os filhos que com a senhora senhora, fizemos. Essa senhora que passa a ter raiva de nós porque manda e nós só podemos fugir para guardar a auto estima. Essa que me deste desde que fui teu. Como ainda o sou. Como sempre o vou ser. Porque, mãe, és a memória da minha cultura, a construtora da minha afectividade, dessa afectividade que hoje só pode existir se sabemos respeitar o contexto da senhora. Tarde na vida. Só fica o filho. E, como eu queria crescer, só me tenho devotado a lutar contra os que nos oprimem na vida política, contra os que nos oprimem na vida do lar e nos deixam incapacitados de poder resolver a nossa própria nutrição. Em todas as classes sociais da nossa cultura. Não posso deixar de amar-te mãe, mas bem gostava de amar uma parceira quotidiana, entender os conceitos que nunca entendi. Donde. Mãe, renuncio a ser homem e circulo de casa em casa, de pessoa em pessoa, lançando ao vazio a ternura que tão docemente cultivaste em mim. Esse é o adulto que a mãe fez, claro no saber, obscuro na afectividade, pronto a servir para ser amado, se couber. Obrigado mãe, foi a tua cultura que me fez. Uma entidade solitária, com a sua feminilidade atrofiada. E, no entanto, te amo mãe. È o único que soubeste construir e dificultaste de transferir. Porque queria ser um homem igual, sedutor, penteado, ou não, mas amado na intimidade do ser que a mãe não podia ver. Que agora fica triste e sem mais objectivos que si próprio e a concorrência com todos os outros. Não te ofendas, um adulto só pode renunciar a ser homem quando é criado para ser filho da mulher.

4. Despedida

Um beijo mãe. Até ver. Com ternura, Essa da música dedilhada que oiço enquanto escrevo estas notas para ti. Com o amor filial e servidor que as mães dão aos filhos, homens já, adultos já. È o papel da cultura. Nada a fazer, mãe, coitada da minha mãe....

Nota: trabalho feito a partir dos meus Diários de Campo em vários países de vários Continentes, desde 1965, da mesma forma que o ensaio escrito para este sítio de debate baseado em Andrea Chennier, solo de soprano La mamma morta refere-se a ópera de Humberto Giordanno, ária conhecida dos melómanos. Usado por mim intercalado no meu texto crítico deste ano: O dia da mãe após o dia do trabalhador. 1º de Maio e Domingo 2 do mesmo mês.


publicado por Carlos Loures às 18:00
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